Vilma Gryzinsky
Um país de dimensões continentais, com sistema federativo, um presidente venerado pelos incondicionais e abominado pelos demais, governadores em pé de guerra e cidadãos comuns que querem trabalhar, principalmente nos estados menos afetados pela economia.
Ah, sim, e o debate, obrigatório e urgente, sobre como fazer a retomada de uma economia estonteada pelo vírus maldito virou uma discussão ideológica absurda, irracional, politizada e, principalmente, prejudicial para o país.
As duas partes se acusam de autoritarismo e comportamento ditatorial, quando não de pura e simples insanidade. Ou, alternativamente, de só pensarem em eleição.
Qualquer comparação não é coincidência, guardadas as enormes diferenças.
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No nível regional, o embate acontece principalmente no Michigan, um dos estados gelados da região dos Grandes Lagos, quase grudado no Canadá.
Hoje, vai ter uma carreata marcada pelo Facebook em frente a assembleia estadual. Está sendo chamada de Operação Gridlock, ou engarrafamento, e é promovido pela Coalizão Conservadora de Michigan.
“Todo mundo, todo cidadão, todo comerciante precisa se levantar da cadeira, sair de casa, pegar o carro ou caminhão ou qualquer coisa que seja de acordo com a lei dirigir em estradas pagas pelos contribuintes”, diz o apelo.
Alguns pequenos grupos já estavam se manifestando, pedindo a reabertura do comércio ou apenas invocando o espírito libertário que está na base da formação dos Estados Unidos, tão extremo e arriado que às vezes descamba para a maluquice.
Também não faltam armas, aquelas enormes, já que o porte ostensivo é permitido no Michigan (ou não é proibido por nenhuma lei).
Michigan não é Nova York, com a concentração assustadora de casos, mas está numa situação mais complicada do que a de outros estados distantes e, por enquanto, pouco afetados pela epidemia. Tem 27 mil casos confirmados e quase 1.800 mortes.
A governadora Gretchen Whitmer, do Partido Democrata, decretou uma quarentena pesada. A diferença entre itens essenciais e não-essenciais provocou reações revoltadas.
Alguns produtos “cercados” nas grandes lojas onde o povão de Michigan sempre se abasteceu com hábitos de fartura americana: mudas e sementes (justa no começo da primavera), móveis, carpetes e pisos de vinil, cadeirinhas de bebê. E até bandeiras americanas.
“Sob qual conceito imperioso de governança a governadora Gretchen Whitmer acredita que tem autoridade para proibir unilateralmente centros de jardinagem de vender mudas e sementes de frutas ou legumes”, escreveu David Harsanyi, um dos principais ideólogos da direita trumpista, briguento e agressivo, mas com argumentos que geralmente devem ser levados em conta por quem gosta de conhecer os múltiplos lados dos debates importantes.
Um exemplo: ele não deixou de notar que os antitrumpistas, que acusavam o presidente não ter feito nada e levado o país para o desastre, agora querem proibir que faça qualquer coisa. Principalmente se a coisa envolver qualquer ato referente à reativação da economia.
“Políticos estão agindo como se uma crise sanitária lhes desse direito de comandar as mais íntimas atividades do povo americano de maneiras que são totalmente inconsistentes com o espírito e a letra da Constituição”, escreveu ele na National Review.
Também estão pensando “naquilo”. A popularidade de Gretchen Whitmer subiu para 60% e o nome dela começou a aparecer nas listas de mulheres que podem ser escolhidas por Joe Biden para compor a chapa democrata com ele.
Desvantagens: é branca e tem um nome como Gretchen, sinônimo nos Estados Unidos de tudo que está relacionado com a cultura majoritária. Vantagens: é da ala progressista e fala com autoridade sobre temas explosivos como aborto – ela mesma sofreu um ataque sexual.
Comprar briga com Donald Trump, como outros governadores democratas estão fazendo a respeito da reativação da economia, vai reforçar a posição de Gretchen Whitmer com um eleitorado mais à esquerda.
Normalmente, o que o chefe de governo de Michigan acha ou deixa de achar tem importância zero na política nacional.
Mas a briga está bombando e virou um tema central, no momento. É uma briga, literalmente, pelo poder. Trump tem autoridade para determinar quando, como e quais atividades devem ser retomadas?
Sim e não. As paralisações foram determinadas em nível estadual – tanto que oito estados continuam sem elas.
Mas reabrir sem coordenação com o governo federal é prejudicial, em termos práticos, e pode ser contestado.
É isso que estão planejando fazer os governadores da Costa Leste, com Andrew Cuomo à frente, e os da Costa Oeste, com o californiano Gavin Newson.
Como sempre, Trump pegou pesado. Referiu-se diretamente ao filme baseado na história do motim no Bounty.
“Digam aos governadores democratas que A Revolta no Bounty é um dos meus filmes favoritos de todos os tempos”, tuitou.
“É empolgante e revigorante assistir de vez em quando um bom e velho motim, principalmente quando os amotinados precisam tanto do capitão. Super fácil.”
Tudo o que os Estados Unidos não precisam agora é de uma briga feia entre governadores e presidente.
Certamente já vimos isso em outro país.
Todos querem a mesma coisa, nem que seja por puro e simples instinto de sobrevivência: dominar a epidemia, o que parece já estar acontecendo, apesar dos números horríveis, e salvar a economia.
Os governadores conhecem as realidades locais e Trump teve a boa ideia de convidar os mais brilhantes nomes para formar um “conselho de abertura”.
Quem não gostaria de contar com as propostas de Jeff Bezos, Mark Zuckerberg, Tim Cook, Jamie Dimon, só para ficar nos mais conhecidos?
Não existe no mundo, nem de longe, a concentração de gênios e talentos que tem nos Estados Unidos.
Se não conseguirem trabalhar juntos numa hora dessas, estamos todos ferrados.
E o pessoal de Michigan que quer voltar a trabalhar também tem sua parte. Se a livre manifestação e o confronto de ideias, dentro da lei, ficarem em segundo plano, “para depois”, não voltam nunca.