quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

O PARTIDO DE MARINA(REDE), ESTÁ ANTECIPANDO A TÃO DESEJADA REFORMA POLÍTICA NO BRASIL.


MARIA OSMARINA MARINA SILVA VAZ DE LIMA TEM 55 ANOS. JÁ FOI SENADORA DA REPÚBLICA, MINISTRA DO MEIO-AMBIENTE E CANDIDATA A PRESIDENTE DA REPÚBLICA. MARINA SILVA NASCEU EM UMA PEQUENA COMUNIDADE CHAMADA BREU VELHO, NO SERINGAL BAGAÇO, LOCALIDADE SITUADA NA ZONA RURAL DE RIO BRANCO, CAPITAL DO ACRE. AOS 16 ANOS, MUDOU-SE PARA A ZONA URBANA PARA TRATAR DA SAÚDE, FRAGILIZADA POR DOENÇAS COMO MALÁRIA E HEPATITE. NESSA IDADE, APRENDEU A LER, TRABALHOU COMO EMPREGADA DOMÉSTICA E TAMBÉM DEDICOU-SE À RELIGIÃO. FILIADA AO PT, MARINA DISPUTOU SUA PRIMEIRA ELEIÇÃO EM 1986, PARA DEPUTADA FEDERAL. PERDEU. DEPOIS, EM 1988, FOI ELEITA VEREADORA EM RIO BRANCO. FOI QUANDO SUA CARREIRA POLÍTICA DESLANCHOU. NA ELEIÇÃO SEGUINTE, DE 1990, ELEGEU-SE DEPUTADA ESTADUAL. E, EM 1994, AOS 36 ANOS, TORNOU-SE SENADORA, CARGO PARA O QUAL FOI REELEITA EM 2002. MARINA SILVA FOI MINISTRA DO MEIO AMBIENTE DO EX-PRESIDENTE LULA DE 2003 A 2008. PEDIU DEMISSÃO DO CARGO POR DISCORDAR DE POLÍTICAS DO GOVERNO PETISTA. FILIOU-SE AO PARTIDO VERDE E DISPUTOU A ELEIÇÃO PRESIDENCIAL DE 2010 CONTRA A CANDIDATA DO PT, DILMA ROUSSEFF. MARINA FOI DERROTADA, MAS FICOU EM 3º LUGAR COM 19,6 MILHÕES DE VOTOS. AGORA, EM 2013, FORA DO PARTIDO VERDE, MARINA SILVA TENTA FUNDAR UMA NOVA SIGLA... CHAMADA "REDE SUSTENTABILIDADE". SE A "REDE" FICAR PRONTA, MARINA PODE DISPUTAR A PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA PELA LEGENDA EM 2014.

FOLHA/UOL: O NOVO PARTIDO QUE ESTÁ SENDO CRIADO DEVE SER TRATADO POR NÓS COMO A REDE OU O PARTIDO REDE SUSTENTABILIDADE? MASCULINO OU FEMININO?

MARINA SILVA: É. Eu acho que a Rede.

FOLHA/UOL: É?

MARINA SILVA: A Rede. É.

FOLHA/UOL: SERIA, ASSIM, NO FEMININO, ENTÃO. A REDE, SEMPRE.

MARINA SILVA: A Rede. É.

FOLHA/UOL: ESTÁ CERTO.

MARINA SILVA: Porque, inclusive, já...

FOLHA/UOL: ENTÃO, "O PARTIDO [A REDE]", NÉ?

MARINA SILVA: É. Mas vai quebrando o paradigma, né?

FOLHA/UOL: ESTÁ CERTO. ENTÃO, FEMININO. E, DOIS, OUTRA DÚVIDA QUE EU TENHO, OS JORNALISTAS TÊM ESSA DÚVIDA: QUEM É DO PARTIDO PT, É PETISTA. DO PMDB, PEMEDEBISTA. DO PSDB, PEESSEDEBISTA. QUEM É DA REDE É O QUE? REDISTA? COMO A GENTE PODERIA CHAMAR?

MARINA SILVA: É, isso é ainda uma indagação que até o meu filho, que trabalha com programação, me fez. "Mãe, como é que vai ser isso?" Eu digo, as pessoas vão ser criativas o suficiente para encontrar um caminho. Ou, pelo menos, vão nos chamar de "os redes".


FOLHA/UOL: OS REDES?

MARINA SILVA: [risos]

FOLHA/UOL: ESSA SERIA UMA FORMA ACEITÁVEL, VOCÊ ACHA, DO GRUPO QUE FOI COMPOSTO?

MARINA SILVA: É. Eu acho que soa bem, não é?

FOLHA/UOL: É. MUITO BEM. COMO É QUE ESTÁ A COLETA DE ASSINATURAS PARA A FORMAÇÃO DO PARTIDO?

MARINA SILVA: Bem, nesse momento em que a gente ainda está no processo de registro junto ao TSE [Tribunal Superior Eleitoral], ainda é um esforço de mobilização muito espontâneo. Mas várias iniciativas estão sendo tomadas e, sobretudo, das pessoas que entram no nosso site, o www.brasilemrede.com.br, e baixam a ficha e estão encaminhando para os endereços mais próximos.

FOLHA/UOL: EU SOUBE QUE, NUM PRIMEIRO MOMENTO, CERCA DE 20 MIL FICHAS FORAM BAIXADAS. TEM ALGUMA ATUALIZAÇÃO DESSE NÚMERO?

MARINA SILVA: Nesse momento, eu não tenho essa atualização. Mas é uma grande quantidade que já foi baixada e a busca que as pessoas estão fazendo. Eu estou medindo um pouco isso nas minhas caminhadas. Geralmente, as pessoas são muito respeitosas, mas quando, agora, depois do sábado que foi lançada a Rede, uma boa parte passa e diz: "COMO É QUE EU FAÇO PARA AJUDAR? CONTE COMIGO". E várias pessoas estão manifestando espontaneamente o desejo de contribuir com as assinaturas. Já tivemos um ato aqui, na Feira do Guará, sábado aqui em Brasília. Em São Paulo também, lá na Av. Paulista. E em Minas Gerais já está programado. Em vários lugares, as pessoas já estão fazendo. E não só, digamos assim, pelos grupos mais ligados à Rede, mas iniciativas espontâneas também de pessoas que não são fundadoras ou que não estão diretamente ligadas.

FOLHA/UOL: UMA DIFICULDADE QUE MUITOS QUE JÁ MONTARAM ALGUM PARTIDO NO BRASIL RELATAM É QUE NÃO É SÓ A COLETA DAS ASSINATURAS, QUE É UM PROCESSO DIFÍCIL, MAS TAMBÉM A VALIDAÇÃO DAS ASSINATURAS E O ENFRENTAMENTO DE ALGUMAS IMPUGNAÇÕES OU PROTESTOS DE GRUPOS QUE SÃO CONTRA A FORMAÇÃO DO PARTIDO. NO CASO DA REDE, COMO ISSO ESTÁ SENDO VISTO E COMO VAI SER ENFRENTADO?

MARINA SILVA: Bem, primeiro nós estamos olhando com muita atenção aos erros que foram cometidos por outras iniciativas no sentido de aprender com elas e evitar.

FOLHA/UOL: POR EXEMPLO.

MARINA SILVA: Por exemplo, acumular muitas fichas para mandar para a Justiça Eleitoral. No caso, aquela zona que precisa ser verificada, atestada a assinatura da pessoa, a veracidade daquele apoio. Então, nós estamos fazendo um esforço para mandar em pequenas quantidades para facilitar o trabalho. E, obviamente, que existem duas dificuldades, na verdade. Uma é a questão do tempo, que é muito pequeno para a coleta de assinaturas. E outro, esse aspecto que você mencionou, enfim, dos questionamentos que possam ser feitos numa estratégia protelatória por parte de algumas pessoas que estão interessadas em que não criemos a Rede. Mas eu espero que o espírito democrático prevaleça porque é um direito que esse grupo representativo, não há dúvida, da sociedade que há mais de 30 anos vem militando na causa socioambiental tem de participar do processo político na sua configuração institucional.

FOLHA/UOL: NÃO É NOVIDADE QUE NO CONGRESSO HÁ ALGUNS PROJETOS QUE FORAM APRESENTADOS, PROJETOS DE LEI, QUE TENTAM MUDAR O MODELO ATUAL DE FORMAÇÃO DE PARTIDOS PARA IMPEDIR QUE OCORRA COMO NO CASO DO PSD, O PARTIDO MONTADO PELO EX-PREFEITO DE SÃO PAULO, GILBERTO KASSAB. SE ALGUM DESSES PROJETOS PROSPERAR, VIER A SER APROVADO, ELE VAI IMPACTAR DIRETAMENTE NA INICIATIVA DA REDE. NO CONGRESSO, A Sra. TEM MONITORADO O QUE ESTÁ ACONTECENDO A RESPEITO DISSO E QUAL É A SUA OPINIÃO?

MARINA SILVA: Os parlamentares ligados à Rede, Walter Feldman, Alfredo Sirkis, o deputado [Domingos] Dutra, enfim, e os amigos da Rede estão fazendo esse acompanhamento. Obviamente que isso seria mudar as regras do jogo durante o jogo porque, até então, partidos foram criados com base na legislação atual. Mudar essas regras seria, claramente, uma atitude casuística no sentido de evitar que esse grupo representativo da sociedade também possa buscar uma ferramenta para participar da política institucional alinhado com os seus princípios, com os seus propósitos. Agora, isso também denuncia algo. Que há uma preocupação em relação a essa força política que vem se configurando desde 2010. Se por um lado isso, de fato, demonstra uma ação casuística mesmo, para tentar evitar [a formação do partido], isso não se dá por acaso porque, se fossemos uma força irrelevante, com certeza as pessoas estariam nos tratando como trataram boa parte dos demais.

FOLHA/UOL: NO CASO DE PROSPERAR UMA DESSAS INICIATIVAS, DAÍ A REDE, EVIDENTEMENTE, TENTARIA ALGUMA REAÇÃO NO PLANO JUDICIAL? OU NÃO?

MARINA SILVA: É. Eu, enfim, acredito que os advogados da Rede estão já com uma estratégia de fazer esse acompanhamento do ponto de vista do enfrentamento judicial porque seria claramente mudar as regras do jogo direcionadamente para um determinado grupo político já que o próprio partido do Kassab acaba de ser criado sem nenhuma perda daquilo que são os ganhos que tiveram. Isso estaria sendo imposto à Rede. Então, vamos, sim, fazer os questionamentos judiciais e acreditamos que, no caso, a Justiça Eleitoral vai estar muito atenta para evitar dois pesos e duas medidas.

FOLHA/UOL: QUANTOS DEPUTADOS FEDERAIS E SENADORES MANIFESTARAM PUBLICAMENTE A INTENÇÃO DE SE FILIAREM À REDE OU JÁ SE FILIARAM?

MARINA SILVA: Olha, nesse momento, nós temos quatro deputados.

FOLHA/UOL: FEDERAIS?

MARINA SILVA: É.

FOLHA/UOL: QUEM SÃO ELES?

MARINA SILVA: Dois do Maranhão e, inclusive o deputado Dutra, que é militante histórico do PT, o deputado Walter Feldman, do PSDB.

FOLHA/UOL: DE SÃO PAULO.

MARINA SILVA: E o Alfredo Sirkis, do PV. Esses já estão conosco no ato de fundação da Rede.

FOLHA/UOL: O DUTRA DO MARANHÃO. ALFREDO SIRKIS, PV DO RIO DE JANEIRO. VALTER FELDMAN, PSDB DE SÃO PAULO.

MARINA SILVA: E o Simplício também, do PPS do Maranhão.

FOLHA/UOL: SIMPLÍCIO DO PPS DO MARANHÃO. SÃO QUATRO. SENADOR ALGUM SE MANIFESTOU?

MARINA SILVA: Até o momento, temos conversa com algumas pessoas mas muito mais no campo do apoio. Não necessariamente para vir para a Rede. São pessoas que têm um olhar de respeito para conosco, como é o caso do Senador Randolfe [Rodrigues, PSOL- AP] que manifestou claramente que nós temos o direito de nos organizar como tal, mas que ele permaneceria no PSOL e não foi uma abordagem para que ele viesse para a Rede, mas muito mais para que esteja ao lado.

FOLHA/UOL: DEIXE EU FAZER UMA PERGUNTA. O BRASIL TEM 30 PARTIDOS POLÍTICOS. A Sra. JÁ PARTICIPOU DO PT. ESTEVE UM BREVE PERÍODO NO PV. NENHUM DESSES, NA SUA AVALIAÇÃO, PODERIA SER ADAPTADO PARA RECEBER ESSA MILITÂNCIA TODA QUE HOJE SE CONCENTRA AO LADO DA REDE?

MARINA SILVA: Bem, adaptado eu não sei. Mas o PV teve a grande chance de se reelaborar. De se refazer. Mas foi o próprio PV que se recusou a fazê-lo. Após as eleições de 2010, havia o compromisso de que o partido iria se democratizar, abrindo-se para eleger seus dirigentes no plano estadual, municipal, e introduzir no seu programa a questão da sustentabilidade como sendo, digamos assim, a matriz orientadora do seu programa. A parte programática, eu diria, que caminhou bem porque o programa que eu e o Guilherme Leal apresentamos nas eleições de 2010, já era essa contribuição. Infelizmente, na reestruturação do partido, na democratização do partido, isso não aconteceu. E a minha saída, do Guilherme e de um grupo relevante de pessoas do Partido Verde, se deu em função dessa incoerência, de que o PV não foi capaz de fazer jus ao legado que ele mesmo suscitou, preferindo manter-se como um partido que não queria se colocar como um projeto político para o país.

FOLHA/UOL: POR QUE EU PERGUNTO ISSO? EXPRESSANDO, MAIS OU MENOS, UM SENSO-COMUM DE MUITOS BRASILEIROS. SERÁ QUE O BRASIL PRECISA TER TANTOS PARTIDOS?

MARINA SILVA: Eu diria que o Brasil precisa repensar o seu sistema político. Reformar o sistema político. E a Rede surge exatamente para fazer esse questionamento que você está fazendo. Eu diria que nós estamos antecipando, em alguns aspectos, a reforma política que desejamos. Porque não dá para continuar fazendo compromisso com a reforma, como fazem aqueles que ganham as eleições, e depois reformando o compromisso. Nós decidimos que, no que desse para antecipar, mesmo de acordo com a legislação atual, nós já iríamos fazendo essa antecipação. Como, por exemplo, o teto para contribuição financeira. Nós advogamos e trabalhamos pelo financiamento público de campanha. Isso vai estar no nosso programa, está na nossa plataforma. Mas, enquanto ele não vem, que tal pensarmos no financiamento popular de campanha? EM VEZ DE POUCOS CONTRIBUINDO COM MUITO, MUITOS CONTRIBUINDO COM POUCO.

FOLHA/UOL: ESSE MODELO FOI TATEADO NA ÚLTIMA ELEIÇÃO PELA SUA CAMPANHA À PRESIDENTE DA REPÚBLICA, QUE TEVE UM ÊXITO RELATIVO ÀS DEMAIS. MAS, OLHADO EXCLUSIVAMENTE NO PLANO GERAL, AINDA FOI MUITO MODESTO O VALOR OBTIDO E O NÚMERO DE CONTRIBUINTES. POR QUE FOI TÃO DIFÍCIL, NA ÚLTIMA ELEIÇÃO, AMPLIAR MAIS ESSA BASE DE CONTRIBUINTES INDIVIDUAIS E TER UMA MASSA MAIOR DE CONTRIBUIÇÕES?

MARINA SILVA: Primeiro porque levou muito tempo para validar o sistema junto à Justiça Eleitoral.

FOLHA/UOL: MAS ISSO NÃO VAI SE REPETIR AGORA?

MARINA SILVA: Não, mas agora ele já está validado. Agora, a Justiça já acolheu como mecanismo de arrecadação por parte dos partidos, inclusive em períodos eleitorais. E nós fizemos com que esse sistema se tornasse um sistema público. Ele está à disposição de qualquer partido que queira fazê-lo. A organização da sociedade civil... Enfim, quem quer queira lançar mão desse sistema, inclusive aperfeiçoá-lo, poderá fazê-lo. E nós vamos, com os devidos aperfeiçoamentos, trabalhar com ele. E foi um risco que nós, deliberadamente, decidimos correr. Nós preferimos sair da retórica e tentar implementar do ponto de vista prático do que repetir sempre que almejamos o financiamento público de campanha e continuar fazendo as mesmas coisas. Já que isso está na nossa governança, se colocarmos no estatuto que será assim, a Justiça Eleitoral não criará nenhum constrangimento a nós de fazermos assim.

FOLHA/UOL: SÓ PARA RECAPITULAR, EU ESTOU COM O NÚMERO AQUI DE 2010, LOGO DEPOIS DA ELEIÇÃO, HOUVE UM BALANÇO. PODE SER ATÉ QUE TENHA MUDADO, MAS A ORDEM, EU ACHO, QUE DE GRANDE É ESSA. FORAM 3.095 MIL DOAÇÕES VIA WEB. TOTAL DE 170 MIL REAIS. SENDO REALISTA, QUE TIPO DE HORIZONTE É POSSÍVEL IMAGINAR QUE POSSA SER ATINGIDO EM NÚMERO DE DOADORES INDIVIDUAIS E VALORES DOADOS NA SUA AVALIAÇÃO?

MARINA SILVA: Olha, eu não quero ainda chegar a esse ponto de ficar imaginando um número.

FOLHA/UOL: MAS É QUE É MUITO POUCO. TRÊS MIL É, REALMENTE, MUITO MODESTO.

MARINA SILVA: É. Mas para aquelas circunstâncias de quem estava... Digamos, os pioneiros sempre pagam o preço, né? Dizem que tem os pioneiros e tem os desbravadores. Os colonizadores, aliás. Os pioneiros e os colonizadores. E que a diferença dos pioneiros e dos colonizadores é que os colonizadores precisam perguntar sempre. "E aí? Tem chuva? Tem Sol? A terra é fértil? Tem muitos espinhos?" Não é? Ou seja, no caso, os colonizadores perguntariam: "E vai ter gente suficiente? Vai ter um número, digamos assim, de doações necessárias para o partido ou para a campanha?" E eles perguntam isso para quem? Eles só podem perguntar isso para os pioneiros. E nós queremos pagar o preço dos pioneiros mesmo diante de uma incerteza. Numa demonstração de que é possível pensar a político num processo de construção, de reelaboração dos nossos códigos, das nossas linguagens. Criar um outro acervo de experiência, um outro repertório para um sistema político que está cada vez mais estagnado. Então nós estamos, digamos assim, pagando o preço dos pioneiros para que os desbravadores depois possam fazer as suas devidas perguntas.

FOLHA/UOL: ENTÃO, MAS EU NÃO SOU NEM UM DESBRAVADOR, NEM UM COLONIZADOR. MAS VOU FAZER A PERGUNTA, ENTÃO, PARA A Sra. NA CONDIÇÃO DE PIONEIRA QUE TEVE ESSA BEM SUCEDIDA EXPERIÊNCIA. A Sra. TEVE QUASE 20 MILHÕES DE VOTOS. É LÍCITO SUPOR QUE METADE DAQUELES, OU UNS 25% DAQUELES QUE VOTARAM NA Sra. EM 2010, POSSAM SER PESSOAS QUE ESTEJAM PROPENSAS OU QUE NÃO TIVERAM CONDIÇÕES, NAQUELE ANO, DE FAZER UMA DOAÇÃO? É ISSO?

MARINA SILVA: Olha...

FOLHA/UOL: EU ESTOU PENSANDO NUM HORIZONTE OBJETIVO. FORAM 20 MILHÕES DE VOTOS. METADE, SERÁ QUE DOARIAM? 25%? 10%?

MARINA SILVA: Eu acho que a gente não pode fazer esse cálculo automático. Acho que é trabalhar para que se crie uma cultura da doação espontânea. Para que se crie uma cultura dessa ideia de muitos contribuindo com pouco. Isso já acontece nos Estados Unidos. Por que não experimentar no caso da realidade brasileira, da América Latina? E, no caso do Brasil, há um potencial. Eu não sei exatamente quanto isso pode se configurar em ação efetiva por parte das pessoas. Nós vamos trabalhar para que isso se estabeleça como um novo paradigma: de que as pessoas assumam a responsabilidade com aquilo que elas querem ver se transformar em realidade. E, obviamente, que uma campanha tem custos e, se esse custo for distribuído, é bem melhor do que ele centralizado na mão de poucos doadores. Um exemplo disso, Fernando, foi agora, no encontro que nós tivemos. Cerca de 1.700 pessoas vieram pagando as suas passagens, fazendo hospedagem solidária ou pagando a sua hospedagem, a sua alimentação, não é? Esse número de delegados ou de participantes teriam um custo em média, sendo bem conservadora, em torno de 500 a 700 mil reais. Imagino que as pessoas, em menos de 20 dias, se mobilizaram para dar uma contribuição dessa magnitude. Então há um potencial e a Rede vai trabalhar esse potencial para que a gente crie uma nova cultura política na realidade do Brasil.

FOLHA/UOL: O CADASTRO DE CERCA DE UM MILHÃO DE PESSOAS QUE FOI MONTADO EM 2010 PERMANECEU COM A REDE OU FICOU NO PV?

MARINA SILVA: Bem, é do PV também, mas ele faz parte desse legado que, também, nós temos acesso a eles. Até porque foi um, digamos, produto coletivo, de um esforço coletivo.

*FOLHA/UOL: ENTENDI. PARA ESGOTAR ESSE TEMA DO FINANCIAMENTO, FOI ANUNCIADO QUE A REDE NÃO DEVE ACEITAR DOAÇÕES DE DETERMINADAS EMPRESAS. A SABER: EMPRESAS QUE FABRICAM CIGARRO, BEBIDAS ALCOÓLICAS, AGROTÓXICOS E, SE EU NÃO ME ENGANO, UMA OUTRA. ENFIM, AGORA, TEM OUTRAS EMPRESAS QUE TAMBÉM SÃO POLÊMICAS NA SOCIEDADE, SE ENVOLVEM EM ESCÂNDALOS. POR EXEMPLO, EMPREITEIRAS. UMA EMPREITEIRA QUE DOOU PARA A Sra. EM 2010, A ANDRADE GUTIÉRREZ, ELA FAZ A USINA ANGRA III, USINA NUCLEAR. TEM LUCROS POR CONTA DE CONSTRUIR UMA USINA NUCLEAR. FEZ UMA DOAÇÃO PARA A SUA CAMPANHA. EMPREITEIRAS NÃO HÁ, PELO QUE EU ENTENDI, UMA LIMITAÇÃO DE DOAÇÃO. NÃO É UMA LIMITAÇÃO PELA METADE ESSA QUE FOI FEITA? E, SE É PELA METADE, SERÁ QUE ELA É EFICAZ?*

MARINA SILVA: Bem, na verdade, pelo que nós fizemos em 2010, foi estabelecer que, no caso, armamento e tabaco não doariam para a campanha em 2010. Por que fizemos isso? Primeiro porque era uma forma de divulgar o nosso ideal de uma cultura de paz. Tinha uma força simbólica. E, no caso do tabaco, também a questão da saúde. Lembra que naquela época estava toda a discussão da proibição do fumo em espaços públicos em São Paulo? Uma situação bem intencionada. E nós resolvemos que iríamos participar, inclusive colocando claramente na nossa campanha que não iríamos receber doação da indústria do fumo. Nesse momento, agora, a Rede entendeu que também o problema dos agrotóxicos está muito grave, envolvendo graves problemas de saúde das pessoas. E, nessa linha de saúde, continuamos com o simbolismo de não receber os recursos dessas empresas. E, também, em relação a cultura de paz. Tem um recorte simbólico em relação à questão da paz e da saúde. Em relação as demais empresas, vai ser tratado no caso a caso. Até porque resolvemos que, como a legislação estabelece que pode haver doação de empresas, o que nós fizemos para que todas pudessem, vamos dizer assim, ter o mesmo recorte é o que teto para a contribuição que vai ser arbitrado de acordo com o levantamento que os nosso especialistas irão fazer futuramente. Então, vai ter o teto com certeza. Algo que não caracteriza qualquer possibilidade de influência em qualquer processo político para que fique bem claro essa ideia de muitos contribuindo com pouco, inclusive aqueles que podem contribuir mais. Porque, entre os simpatizantes da Rede, tem pessoas que até gostariam de contribuir mais. E nós resolvemos colocar essa autolimitação exatamente para evitar que ficássemos dependendo das contribuições daqueles que já estão propensos a contribuir. No caso das demais empresas, vamos tratar no caso a caso, sem nenhum tipo de discriminação em relação a elas. A questão da saúde e da paz foi o recorte que fizemos do ponto de vista de um posicionamento político que já fosse traduzido numa atitude.

FOLHA/UOL: ENTENDI. AGORA, AINDA ASSIM, ESSE RECORTE QUE FOI FEITO: ARMAS, FUMO, BEBIDAS ALCÓOLICAS, AGROTÓXICOS. QUATRO ÁREAS. ESSE EXEMPLO ESPECÍFICO QUE EU DEI, UMA EMPREITEIRA QUE CONSTRÓI UMA USINA NUCLEAR E QUE DESEJA DOAR, NESSE CASO TERIA QUE SER ANALISADO.

MARINA SILVA: Depende da situação. Vai ser no caso a caso. Primeiro porque o nosso entendimento é que o doador está doando espontaneamente, que isso não vai configurar nenhuma influência. Pelo menos no meu caso, em todos os debates eu fui fazer, digamos, a afirmação da minha posição contrária a energia nuclear como alternativa para a realidade do Brasil e não seria diferente em relação a qualquer outro aspecto. A independência em relação aquilo que são as nossas posições políticas baseadas no princípio da PROBIDADE, DA VISIBILIDADE, DA TRANSPARÊNCIA e de tudo aquilo que está prescrito na nossa Constituição.

FOLHA/UOL: MAS, NESSE CASO ESPECÍFICO, É UM CASO A SER ANALISADO OU CERTAMENTE UMA EMPRESA ENVOLVIDA NA CONSTRUÇÃO DE UMA USINA NUCLEAR PODERIA DOAR?

MARINA SILVA: Se ela quiser doar mesmo sabendo da minha posição ou da posição contrária da Rede à energia nuclear, não teria nenhum problema. Até porque isso caracterizaria da parte dela um certo desprendimento de estar contribuindo com quem tem uma posição contrária. Isso é a democracia.

FOLHA/UOL: MAS, NESSE CASO, SE A REDE TEM CONTRA, A POSIÇÃO DA Sra., QUE É PÚBLICA, ENERGIA NUCLEAR PARA A CONJUNTURA BRASILEIRA E É CONTRA, TAMBÉM, O USO DE AGROTÓXICOS, DIGAMOS COMO EFEITO. AGORA, A EMPRESA LIGADA À ENERGIA NUCLEAR PODE TER O DESPRENDIMENTO DE DOAR. AGORA, A EMPRESA QUE FAZ O AGROTÓXICO, MESMO SABENDO DA SUA POSIÇÃO, NÃO PODERIA DOAR.

MARINA SILVA: Porque, nesse caso, nós queremos marcar muito claramente que é uma posição política mesmo em relação aos problemas graves de saúde que estão sendo causados em função do abuso dos agrotóxicos. É um protesto, não é? E, obviamente, que futuramente, se a Rede decidir protestar outras atividades que considerem que deve protestar, vai fazê-lo. Vamos tratar no caso a caso. Não é uma posição a priori. Do mesmo jeito que temos uma posição crítica com relação ao uso abusivo da produção de energia de hidroeletricidade, mas não uma posição ideológica que, no caso em que fique devidamente comprovado que aquela hidrelétrica pode ser feita respeitando os aspectos sociais, ambientais, culturais, não tem nenhum problema, é um potencial de geração que deve ser usado e que é altamente benéfico para o nosso país que, afinal de contas, tem a sua maior fonte de geração na hidroeletricidade. Não é um posicionamento ideológico. E vamos tratar, sim, no caso a caso.

FOLHA/UOL: SE, MUITO DIFÍCIL FALAR NO CONDICIONAL MAS, SE, EVENTUALMENTE, ATÉ 5 DE OUTUBRO NÃO FOR POSSÍVEL OBTER O REGISTRO DEFINITIVO, O QUE FAZER?

MARINA SILVA: Algo que a Rede vai ter que debater. Agora, uma coisa é certa: Nós não vamos ter uma atitude exacerbada em relação a tentar viabilizar uma candidatura a qualquer custo, a qualquer preço. Queremos ter total coerência programática. E nossa decisão levará em conta o esforço e a coerência com o que vem sendo feito. Quando eu saí do PV, eu disse que não ia ficar na cadeira cativa de candidata e não estou na cadeira cativa de candidata. Havia um grupo que achava que deveríamos fazer imediatamente um partido. Decidimos que íamos apostar no movimento. Durante esses dois anos, eu andei o país inteiro defendendo o ideário da sustentabilidade em todas as suas dimensões, inclusive na dimensão da sustentabilidade política. E, nesse momento, houve um entendimento da maioria das pessoas que participam dessa rede, porque nós já somos uma rede, que se deveria participar também do processo político institucional na forma da criação de uma ferramenta política que nos possibilitasse isso. PORQUE O BOM DA IDEIA DA REDE É QUE ELA É MUITO MAIOR DO QUE AS FRONTEIRAS QUE UM PARTIDO POSSA ESTABELECER. Existem pessoas que estão na Rede que nem estão no possível partido que criaremos. Então, nós vamos manter coerência com esse legado. Não vai haver nenhum tipo de atropelo ou atropelamento das ideias para viabilizar uma candidatura de forma incoerente com essa história e com essa trajetória. Temos alguns partidos que até se dispuseram ao diálogo conosco. Propuseram uma espécie de fusão.

FOLHA/UOL: QUEM SÃO ELES?

MARINA SILVA: No caso, foi o PPS que se dispôs. Eles estão num movimento, também, de transformação, de reavaliação. Acho louvável o esforço que está sendo feito no PPS. Temos um diálogo de proximidade, mas a nossa escolha foi por termos um instrumento político; E, claro, quando chegar o momento, quando essa situação se colocar... Se se colocar, porque se Deus quiser e os brasileiros, nós haveremos de estar aptos para fazer a nossa escolha. Porque mesmo estando aptos, ainda vamos ter que tomar a decisão sobre candidaturas em 2014.

FOLHA/UOL: ENTÃO, PARA RECAPITULAR, DEIXE EU VER SE EU ENTENDI. CINCO DE OUTUBRO, QUE É A DATA EXATA QUE MARCA UM ANO ANTES DA ELEIÇÃO DE 2014, VAI CAIR EM 5 DE OUTUBRO DE 2014. ENTÃO, 5 DE OUTUBRO DE 2013, SE, NA EVENTUALIDADE DE A REDE NÃO ESTAR AINDA COM O REGISTRO DEFINITIVO NA JUSTIÇA ELEITORAL, O MOVIMENTO, COMO A Sra. CHAMA, AÍ ANALISARIA AS POSSIBILIDADES DE EVENTUALMENTE TRABALHAR COM UM PARTIDO JÁ EXISTENTE.

MARINA SILVA: É. Eu não quero trabalhar essa hipótese agora. Eu digo que eu não consigo nadar se eu tenho que fazer uma, digamos travessia a nado com alguém me oferecendo um barco do lado. Eu prefiro encarar a situação e não ficar colocando isso, digamos assim, como um horizonte. Nós estamos  determinados  que teremos a possibilidade de fazer a nossa própria escolha com essa ferramenta política que queremos que o Brasil nos ajude a criar. Então, todo o nosso foco, nesse momento, está para a viabilização da REDE para que possamos fazer essa escolha. E o diálogo com os outros partidos tem muito mais a ver com esse esforço de buscarmos mais e mais pessoas e organizações identificadas com esse conteúdo programático. Porque eu sempre digo que as mudanças que o Brasil e o mundo precisam não serão feitas por um partido, por uma pessoa. Eu gostaria muito de que essa visão pudesse atravessar também os demais partidos. Não apenas quanto um programa, um capítulo para ser mencionado, mas como uma atitude prática nas votações do Congresso, nos compromissos que assumem em relação a várias questões importantes, sobretudo diante do retrocesso que tivemos nos últimos dois anos na agenda ambiental do nosso país.

FOLHA/UOL: NO DIA DO LANÇAMENTO OFICIAL DA REDE, A Sra. DEU UMA ENTREVISTA SE MANIFESTANDO SOBRE VÁRIOS ASPECTOS E MENCIONOU QUE O PARTIDO NÃO SERÁ NEM SITUAÇÃO, NEM OPOSIÇÃO. ALGUMAS PESSOAS ENXERGARAM AÍ UM POUCO DE SIMILARIDADE NAQUILO QUE O EX-PREFEITO DE SÃO PAULO, GILBERTO KASSAB, FALOU SOBRE O PARTIDO DELE QUANDO FOI CRIADO, FALANDO QUE O PARTIDO DELE NÃO SERIA NEM DE CENTRO, NEM DE DIREITA, NEM DE ESQUERDA. EU ENTENDO A RAZÃO PELA QUAL A Sra. FALOU ISSO. NÃO QUERIA FICAR ENQUADRADA NOS PADRÕES TRADICIONAIS DA POLÍTICA PARTIDÁRIA, DO ESTABLISHMENT QUE FOI FEITO E QUE NÃO TEVE SUCESSO ETC. DÁ PARA EU ENTENDER QUE FOI ESSA A INTENÇÃO. AGORA, POR OUTRO LADO, ESSA AVERSÃO À POLÍTICA DOS PARTIDOS TAMBÉM NÃO TEM UM EFEITO RUIM EM CERTA MEDIDA? PORQUE AS PESSOAS NÃO CONSEGUEM ENXERGAR DIREITO O QUE VAI SER A REDE?

MARINA SILVA: Ah, mas as pessoas enxergam muito bem. Eu fiquei nesses últimos três anos, porque contando com a campanha de 2010, dizendo isso. De que nós estávamos à frente. A FRASE COMPLETA É ESSA, DE QUE ESTAMOS À FRENTE. Até porque os velhos enquadramentos já não dão conta mais dessa realidade complexa. A pergunta que se deveria estar fazendo é: Se a esquerda é quem delimita o caminho fora do padrão conservador de fazer política, dos velhos caciques políticos, ter uma separação clara em relação a isso, é isso que é ser esquerda? Se for isso, quem é a esquerda hoje no Brasil? Certo? Se a direita é quem fica na política conservadora e mantém uma certa distância daqueles que se intitulam de esquerda, se for isso, quem é a direita no Brasil? Na verdade, os velhos paradigmas já não dão conta da realidade. Essa realidade complexa exige além, muito além, da oposição pela oposição, que só vê defeitos mesmo quando as virtudes saltam aos olhos, como é o caso do Bolsa Família, e da situação que só vê virtudes, mesmo quando os problemas saltam aos olhos, como é o caso do Código Florestal. É POR ISSO QUE EU DIGO QUE NÓS ESTAMOS À FRENTE. E as pessoas, nesse momento, estão fazendo um esforço muito grande para que nos enquadremos no que está aí. Mas nós não somos o que está aí. Nós somos diferentes pela nossa própria natureza. Foi assim que eu fiz o debate em 2010, não é? Se alguém repetir o que havia sido dito em 2010, problema de quem repetiu fora do contexto apenas como pretexto para se justificar. NÓS TEMOS UMA POSIÇÃO QUE EU CONSIDERO A FRENTE MESMO. A sustentabilidade não deve ser pensada como uma tarefa apenas de esquerda ou de direita. Tem que ser pensada como uma tarefa da sociedade brasileira, dos empresários, dos trabalhadores, dos jovens, da academia, dos índios, de todos nós. É uma força tarefa. Então, essa é uma visão que exige de nós. Não apenas ser oposição por oposição ou situação por situação. Exige posição. E é isso que eu tenho feito. É isso que a gente tem feito. Se a presidente Dilma tem uma proposta interessante em relação às políticas sociais, eu não tenho porque ser contra. Agora, se ela não cumpriu com o que havia se comprometido de vetar os artigos que promovem anistia para desmatadores, eu não tenho porque ser favorável. E isso é assumir posição.

FOLHA/UOL: INCLUSIVE, A PRESIDENTE DILMA ROUSSEFF, QUE JÁ ESTÁ COM QUASE 2 ANOS E 2 MESES DE MANDATO, TEVE NA SUA CAMPANHA, EM 2010, NA PROPAGANDA ELEITORAL, UMA IMAGEM OFERECIDA AOS ELEITORES DE GRANDE ADMINISTRADORA, EFICAZ, E QUE IRIA AJUDAR O BRASIL NAQUILO QUE SE CONVENCIONOU CHAMAR DE GOVERNANÇA. O BRASIL CRESCEU POUCO NOS ÚLTIMOS 2 ANOS, ENFRENTA ALGUNS PROBLEMAS ESTRUTURAIS. A Sra. ACHA QUE ESSA IMAGEM DA GRANDE ADMINISTRADORA FOI MAL COLOCADA EM 2010?

MARINA SILVA: Bem, nós vivemos uma situação delicada. De fato, o crescimento pífio do nosso país coloca uma série de preocupações, não só para o governo, mas para todos nós. Eu não faço a política do quanto pior, melhor. Eu acho que nós temos que começar a pensar a política a partir de acúmulos que sejam progressivamente melhores para o Brasil. É muito fácil você fazer política em cima da ideia de terra arrasada. Torcer para que o país vá mal e, em cima dessa situação, você se viabilizar como salvador da pátria. Difícil é você fazer um debate em que você diga: "Nos últimos dezesseis anos, tivemos conquistas na agenda econômica, na estabilidade econômica, tivemos conquistas na agenda social. Vamos manter essas conquistas, corrigir os erros e..."

FOLHA/UOL: A Sra. FALOU 16 ANOS, TERMINA NO LULA. A Sra. EXCLUIU A DILMA OU NÃO? QUERIA DIZER 18 NA VERDADE?

MARINA SILVA: Eu estou falando de um período. É um referencial de onde começaram as mudanças. Por exemplo, o avanço das políticas sociais é claramente identificado com o governo do presidente Lula e a presidente Dilma dá continuidade às políticas que foram iniciadas e consolidadas no governo do presidente Lula. A questão da estabilidade econômica foi uma conquista do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. O presidente Lula deu continuidade. E a presidente Dilma, a duras penas, está tentando dar continuidade, com sérias dificuldades de manter esses ganhos, já que estamos vivendo uma situação em que o repeteco das medidas de 2008 e de 2009 já não está funcionando mais. Então, neste momento é fundamental que tenhamos um olhar para várias questões referentes ao Brasil. Para mim, o Brasil, e eu dizia isso na campanha, não precisa ficar fazendo a apologia do gerente. Um presidente da República não é para ser o gerente do país. O presidente da República é para ter visão estratégica. Quando ele tem isso, ele consegue os melhores gerentes. O Fernando Henrique não era um gerente. O Lula não era um gerente. Mas foram pessoas que tiveram uma determinada visão estratégica em relação à economia, em relação às políticas sociais. Qual é o desafio do Brasil de hoje? O desafio do Brasil, hoje, é, em cima dos ganhos já alcançados, ir numa outra direção que, no meu entendimento, é a mudança do modelo de desenvolvimento. Como sair do modelo atual, predatório, insustentável, que não é só do Brasil, é do mundo inteiro, para uma economia de baixo carbono? COMO INVESTIR EM EDUCAÇÃO, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO PARA PRODUZIRMOS OS EMPREGOS, A QUALIDADE DE VIDA, PRESERVANDO OS ATIVOS AMBIENTAIS. Esse aí é o grande desafio que, infelizmente, a presidente Dilma não foi capaz de entender. Mas não só ela. O PT não foi capaz de entender. O PSDB não é capaz de entender essa nova agenda que se coloca para o mundo.

FOLHA/UOL: NESTE CASO, A Sra. ESTÁ DIZENDO: A PRESIDENTE DILMA TEM MAIS UMA VISÃO DE GERENTE E MENOS UMA VISÃO ESTRATÉGICA NESTE CASO?

MARINA SILVA: Eu não estou dizendo isso. O que eu disse é que não se deve ficar fazendo a apologia do gerente. O país precisa de quem tem...

FOLHA/UOL: A Sra. CITOU O LULA E O FERNANDO HENRIQUE, MAS NÃO CITOU ELA COMO VISÃO ESTRATÉGICA.

MARINA SILVA: Não, mas é porque a apologia do gerente foi feita em relação a ela. Talvez um erro de quem fez a sua campanha, correto?

FOLHA/UOL: DELA TAMBÉM, NÃO É? ELA COMANDAVA A CAMPANHA, OU NÃO?

MARINA SILVA: Não sei. É possível que, em parte, sim. Numa campanha, você não há de achar que o candidato, ele sozinho faça a sua campanha.

FOLHA/UOL: MAS À REVELIA DELE ALGO IMPORTANTE ASSIM TAMBÉM NÃO É FEITO.

MARINA SILVA: Com certeza não. Há, digamos, uma aceitação. Mas alguém trabalhou essa imagem. Mas eu não quero aqui ficar entrando nos estrategistas de campanha da presidente Dilma que, inclusive, foram vitoriosos. O que eu disse...

FOLHA/UOL: MAS A GESTÃO MESMO... A PRESIDENTE DILMA CARECE UM POUCO DE VISÃO ESTRATÉGICA NA SUA OPINIÃO?

MARINA SILVA: Em relação aos temas deste século, com certeza. Apostar em energia limpa renovável e segura com uma matriz energética diversificada, distribuída, isso seria a visão estratégica deste século. Políticas de longo prazo no curto prazo dos políticos. Em vez de políticas de curto prazo para alongar o prazo dos políticos. Ter um incentivo a ser dado para estimular a economia sem contrapartidas ambientais, no meu entendimento é carecer de visão estratégica. O Obama está fazendo política de incentivo e cobrando contrapartidas ambientais. Não ter um olhar para a posição estratégica que o Brasil ocupa como economia emergente para produzir, criar essa nova economia é falta de visão estratégica. Agora, isso não é falta de visão estratégica de uma pessoa, é de um comando. É do próprio PT, que não foi capaz de resignificar suas bandeiras. E do PSDB...

FOLHA/UOL: MAS O COMANDO DO PAÍS ESTÁ COM A PRESIDENTE.

MARINA SILVA: Sim, está com a presidente. Mas, ela, infelizmente não está indo nessa direção. O que eu estou dizendo é que, infelizmente, nesse particular, de ver o Brasil por esse ângulo de um país que pode quebrar paradigmas, que pode fazer jus à potencia ambiental que ele é, não está sendo feito. Pelo contrário, nós temos retrocessos. É a primeira vez que, em lugar de avançar, se está perdendo as conquistas dos governos anteriores. É só verificar o caso do Código Florestal, da mudança que foi feita nas competências do Ibama para fiscalizar desmatamento. É só verificar a mudança que foi feita para dar poderes à presidente, para que ela possa reduzir unidades de preservação criadas em outros governos, para facilitar as licenças das hidrelétricas que estão previstas. Então é a primeira vez que, em vez de ganhos, você tem retrocessos. Agora, eu acho que essa agenda estratégica não está separada de uma agenda de transformação na política. A política está mudando e vai mudar no mundo inteiro. Há um movimento que começa a acontecer, que o professor Eduardo Viola fala que é da ordem de mais ou menos 20% das pessoas, que estão com uma visão reformadora do mundo. Eu chamo isso de "BORDA". Tem um núcleo estagnado que só consegue ver o que aí está, o diapasão do que está aí, mesmo os esforços que estão acontecendo agora na Europa para socorrer da crise econômica ainda é dentro do velho paradigma. O ESFORÇO SERIA DE JÁ IRMOS NÃO É NEM FAZENDO UMA RUPTURA, PORQUE NÃO É POSSÍVEL UMA RUPTURA ABRUPTA, NEM UMA TRANSIÇÃO DEMORADA, É PRODUZINDO MESMO UMA MUTAÇÃO NO PRÓPRIO TECIDO ESTAGNADO PARA ESSA TRANSFORMAÇÃO, PORQUE A GENTE ESTÁ VENDO UMA CRISE CIVILIZATÓRIA. A MODERNIZAÇÃO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO COM A INTERNET ESTÁ POSSIBILITANDO MUDANÇAS EM TODOS OS SETORES DA VIDA HUMANA, DENTRO DAS EMPRESAS NA CULTURA, NA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO, NA GESTÃO PÚBLICA. POR QUE NÃO FARIA NA POLÍTICA? A política terá necessariamente que se reinventar. E uma das formas dessa reinvenção é o novo modelo de ativismo que está surgindo no mundo. Hoje, você não tem mais aquele ativismo clássico, dirigido pelo partido, pelo sindicato, pela UNE, pelo DCE. Hoje é aquilo que eu chamo de ativismo autoral. As pessoas são autoras da sua ação política. Eles são protagonistas, eles são mobilizadores e, ao mesmo tempo, eles são aqueles sonhadores que acreditam que podem ajudar a transformar o mundo. Isso vai mudar completamente a lógica do fazer político e, digamos, as instituições políticas terão que se reinventar, inclusive, não é, as lideranças carismáticas, cada vez mais elas vão ser substituídas por novas formas de lideranças. E eu falo isso com muita tranquilidade porque eu sei que eu tenho um certo carisma. Mas eu tenho dito que, se há alguma coisa para se fazer com o carisma, não é se investir para ter mais carisma. É INVESTIR PARA QUE AS PESSOAS SE CONVENÇAM QUE ELAS PODEM SER UM SUJEITO POLÍTICO LIVRE, INDEPENDENTE, QUE NÃO PRECISA DO CARISMA. Cada vez mais as lideranças serão multicêntricas. Os processos serão multicêntricos. Você vai ser líder num determinado momento e, em outro determinado momento, você vai ser liderado. Esse ativismo autoral a gente vê agora com a assinatura do mais de um milhão de assinaturas de pessoas contra o presidente [do Senado] Renan [Calheiros, do PMDB-AL], a gente vê na blogueira cubana [Yoani Sánchez], que inclusive foi impedida em vários momentos de manifestar a sua opinião na nossa democracia... Enfim, esse ativismo autoral é uma característica do nosso tempo.

FOLHA/UOL: A Sra. MENCIONOU O PRESIDENTE RENAN CALHEIROS DO SENADO FEDERAL. O SENADOR RENAN, DO PMDB DE ALAGOAS, QUE FOI RECÉM ELEITO PARA COMANDAR O SENADO. HÁ UM MOVIMENTO GRANDE NA INTERNET QUE PEDE QUE ELE SEJA RETIRADO DO CARGO. NÃO OBSTANTE, QUANDO AS MANIFESTAÇÕES DE RUA SÃO CHAMADAS, O NÚMERO DE PESSOAS QUE COMPARECEM AINDA É, RELATIVAMENTE, MUITO BAIXO NA COMPARAÇÃO DOS QUE ASSINAM NA INTERNET. QUANDO VAI SER POSSÍVEL TRANSBORDAR DA INTERNET PARA A RUA?

MARINA SILVA: De certa forma, já está transbordando. Já está transbordando. Eu acho que transbordou da internet...

FOLHA/UOL: A Sra. ASSINOU ESSA PETIÇÃO NA INTERNET?

MARINA SILVA: Não. Não assinei.

FOLHA/UOL: MAS ASSINARIA?

MARINA SILVA: Eu encontrei com o rapaz que fez a mobilização. E ele até falou: "Nós vamos entregar para o Congresso a petição e a sra. não gostaria de estar?" "Não. Para o seu próprio bem, é melhor que eu não esteja. Porque isso é um processo autoral, com autonomia de pensamento".

FOLHA/UOL: MAS COMO CIDADÃ, A Sra. ASSINARIA ESSA PETIÇÃO?

MARINA SILVA: Como cidadã, eu teria outros meios para fazê-lo. Não necessariamente da forma como ele fez. Mas eu acho que o Congresso Nacional...

FOLHA/UOL: MAS A Sra. ACHA LEGÍTIMO?

MARINA SILVA: Acho legítimo. Acho legítimo...

FOLHA/UOL: MAS A Sra. ACHA BOM E DESEJÁVEL QUE RENAN CALHEIROS SAIA DO CARGO DE PRESIDENTE DO SENADO?

MARINA SILVA: Eu acho bom e desejável que a gente tenha uma reforma do nosso sistema político. Inclusive para que não se tenha a repetição dos mandatos como temos e nós já colocamos na REDE de que até dois mandatos apenas, para que a gente não tenha esse tipo de situação em que as pessoas vão se perpetuando no poder, em que pese os questionamentos excessivos que são feitos. Nós temos casos no Congresso em que a imprensa inteira, a sociedade inteira se colocou contra uma autoridade e ela permaneceu lá, intacta.

FOLHA/UOL: ESTOU COM MEDO DO TEMPO PORQUE A GENTE JÁ ESTÁ UM POUCO ESTOURADO, MAS, NO CASO DO RENAN, EU NÃO VOU PODER ESCREVER, COM ISSO QUE A Sra. FALOU, QUE A Sra. É A FAVOR DA SAÍDA DELE. O QUE EU DEVO ESCREVER? MARINA SILVA SOBRE RENAN CALHEIROS, ELE DEVE SAIR? DEVE FICAR?

MARINA SILVA: Ele deve levar em conta o clamor que a sociedade está dizendo. E não considerar o clamor que a sociedade está dizendo... Não só o Renan, isso não é uma atitude do Renan. Isso é algo para ser trabalhado pelos 81 senadores, inclusive os que votaram no presidente Renan. Há um questionamento muito forte, um descompasso muito grande entre o que a sociedade está manifestando e aquilo que o Congresso está fazendo. E não é a primeira vez. No Código Florestal, 84% não queria as mudanças e 80% fez as mudanças. No caso do Renan, mais de 1,5 milhão de pessoas estão dizendo que foi inadequada a escolha por parte do Congresso. Inadequado do ponto de vista político. E não estão considerando. Vai chegar um momento que essa, digamos, atitude que as pessoas acham que não transborda, vai começar a transbordar. E não adianta esperar que esse novo ativismo será da mesma forma do que nós fazíamos no passado. Não vai ser. Só que vai chegar um momento que vai transbordar na hora da escolha política. O cidadão vai começar a manifestar, como manifestou na eleição de 2010. As pessoas acham que o voto que foi dado a mim, foi algo esporádico que aconteceu naquele momento. Se eu tivesse no Congresso, não teria votado no senador Renan Calheiros. Teria votado no candidato do PSOL, claramente. Então, já estou dizendo qual é a minha posição.

FOLHA/UOL: O PDT, NO CASO. FOI, NÉ? PEDRO TAQUES.

MARINA SILVA: Do Pedro Taques, aliás.

FOLHA/UOL: DEIXE EU FAZER ALGUMAS PERGUNTAS ASSIM, SE A GENTE PUDESSE CORRER UM POUCO. A Sra. FALOU DA VISÃO ESTRATÉGICA DO PAÍS. NO CASO DA REDE, SE A REDE CHEGA A TER A POSSIBILIDADE DE SER ESCOLHIDA PARA COMANDAR O PAÍS. ALGUNS ASPECTOS DA ECONOMIA QUE ESTÃO SENDO TOCADOS, FORAM TOCADOS POR FERNANDO HENRIQUE, LULA, MAIS OU MENOS, QUE CONTINUOU E DILMA ROUSSEFF TAMBÉM. POR EXEMPLO, A GESTÃO DA TAXA DE JUROS, A GESTÃO DE VÁRIOS ASPECTOS DA ECONOMIA. HAVERIA MUDANÇAS SIGNIFICATIVAS NA CONDUÇÃO DESSES ASPECTOS QUE REGEM O PAÍS. POR EXEMPLO, TAXA DE CÂMBIO, TAXA DE JUROS, CONTROLE DA INFLAÇÃO?

MARINA SILVA: Na campanha de 2010, nós dissemos claramente das nossas diretrizes programáticas que iríamos manter o tripé da política econômica por entender que essa política era o que estava viabilizando o desenvolvimento em bases sustentáveis do ponto de vista econômico do nosso país.

FOLHA/UOL: ISSO SE MANTÉM?

MARINA SILVA: Isso se mantém. A REDE mantém a mesma diretriz programática que nós estabelecemos na campanha de 2010. Claro que a grande mudança que faríamos é justamente no direcionamento daquilo que é o que eu chamo de uma competição pelo caminho de cima. Não iríamos nos perder nessa história de Estado provedor ou Estado fiscalizador. Eu até criei um termo para isso. Nós apostamos na ideia do estado mobilizador. E aí, a gente quebra mais uma vez mesmo o paradigma porque, o tempo todo, as pessoas estão querendo enquadrar. Ou você é mais Estado ou menos Estado. Não. Nós temos que fazer uma síntese desses esforços e fazer com que o nosso país continue sendo um país economicamente próspero, mas, ao mesmo tempo, ambientalmente sustentável. Essa seria a grande mudança. Manteríamos o tripé da política econômica que, aliás, existe até uns questionamentos se, de fato, ele ainda está devidamente equilibrado em função dos riscos que temos atualmente com relação a questão da inflação e das medidas que vêm sendo tomadas.

FOLHA/UOL: MAS EM RELAÇÃO AO TRIPÉ QUE SEGURA, A ECONOMIA, NO MOMENTO, A IDEIA É A MANUTENÇÃO?

MARINA SILVA: A manutenção, sim. A ideia do câmbio flutuante com todas as questões que levam à autonomia para operar a política econômica.

FOLHA/UOL: TEMA POLÊMICO. RELIGIÃO. FOI UM TEMA NA ÚLTIMA ELEIÇÃO. A Sra. TEM POSIÇÕES CONHECIDAS SOBRE VÁRIOS ASPECTOS QUE SÃO CAROS PARA QUEM TEM UMA RELIGIOSIDADE COMO A Sra. TEM. FLEXIBILIZAÇÃO DA LEI DO ABORTO, CASAMENTO ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO, VÁRIOS ASPECTOS QUE SÃO E PROVOCAM POLÊMICA NO CONGRESSO QUANDO VÃO SER ANALISADOS. A Sra. MANTÉM ESSAS POSIÇÕES E, NO CASO DA REDE, COMO QUE ELA VAI TRATAR ESSES TEMAS?

MARINA SILVA: Primeiro, o estatuto da REDE estabeleceu uma cláusula de consciência para que as pessoas que se sentem impedidas, enfim, por questões religiosas, filosóficas, enfim, possam ser coerentes com a sua visão de mundo. Então, eu me sinto beneficiada em relação a esse princípio democrático adotado pela REDE. Porque, às vezes, as pessoas confundem o Estado laico com o Estado para beneficiar apenas os que não creem. Os maiores beneficiados do Estado laico são os que creem. E eu advogo inteiramente o Estado laico. Bem, a REDE não tem ainda uma posição fechada porque nós temos menos de 10 dias de criação, 16 dias de criação.

FOLHA/UOL: VAI TOMAR POSIÇÃO SOBRE ESSES TEMAS, TALVEZ?

MARINA SILVA: Não sei. Vai depender do processo. Obviamente que vai assegurar os que têm posicionamento diferente de manifestar a sua opinião. Agora, nós nos unimos na adversidade. Entre nós, existem pessoas que defendem a descriminalização da maconha, que defendem o aborto, que defende o casamento gay. E, no caso do casamento gay, é bom que fique claro que eu não defendi plebiscito para o casamento gay. Está mentindo quem disse eu defendi. Em nenhum momento eu defendi o plebiscito. O que eu disse é que os direitos civis das pessoas gays devem ser assegurados como para qualquer outra pessoa, que não deve haver nenhum tipo de discriminação. Obviamente que a nossa Constituição também assegura liberdade religiosa. E as igrejas, qualquer uma dela que tenha essa questão dentro dos seus cânones como sendo algo que não é em acordo com aquilo que diz a Bíblia ou aquilo que professa como sendo seu livro sagrado, tem o direito de dizê-lo não tratando como problema moral ou, enfim, de desqualificação das pessoas. É um direito. E isso seria ferir a liberdade religiosa das pessoas. Por outro lado, a Igreja não pode mandar naquilo que são as leis civis. As pessoas têm o direito de ser quem são independentemente da posição daqueles que creem. E isso que eu falei durante a campanha de 2010. Em relação ao aborto, eu defendi o plebiscito porque é uma questão muito complexa, envolve uma série de fatores que não são puramente religiosos. Existem pessoas que não tem nenhuma fé e, no entanto, defendem radicalmente a vida, que não admitem sequer que se mate, enfim, um inseto, qualquer coisa do gênero. São questões de natureza política, de natureza religiosa, de natureza filosófica e eu advoguei a questão do plebiscito. E a mesma coisa para a maconha. Agora, tem uma coisa, Fernando, que as pessoas estão fazendo que é meio dois pesos e duas medidas. Por exemplo, as pessoas dizem que eu sou progressista na agenda da sustentabilidade, dos temas desse século, e sou conservadora em relação alguns aspectos em função da minha, enfim, condição de ser uma pessoa de fé. E me cobram nisso com toda a legitimidade. Aliás, devem cobrar que eu explicite as minhas posições. E eu as estou explicitando. Eu não fiz, durante a minha campanha, nem a satanização de quem defende nem a maconha, nem o casamento o gay e nem a questão do aborto. Tratei sempre com respeito e tentei elevar o debate. Por outro lado, não me escondi de assumir as posições para que as pessoas saibam exatamente o que eu penso. O que não aconteceu com os outros candidatos no segundo turno, que fizeram uma discussão, eu diria, vergonhosa sobre esse tema, assumindo posições que claramente não eram as suas posições e as pessoas tratam isso como se fosse a coisa mais natural do mundo.

FOLHA/UOL: HOUVE UMA HIPOCRISIA NO SEGUNDO TURNO, NÃO É ISSO?

MARINA SILVA: Claramente. Claramente, um uso no mínimo inadequado dos temas. De autopromoção...

FOLHA/UOL: TANTO POR PARTE DA CANDIDATA DO PT, DILMA, CANDIDATO DO PSDB, JOSÉ SERRA?

MARINA SILVA: Eu diria que houve um uso inadequado. Eu não diria a palavra hipocrisia porque eu não tenho como julgar na subjetividade. Mas, claramente, um uso inadequado desse tema, exacerbando mil vezes mais do que eu, que tinha uma posição religiosa. Aliás, as pessoas, depois reconheceram isso. De que eu tratei, de forma muito mais correta e progressista os temas, do que foi tratado pelo Serra e pela Dilma no segundo turno. Então, eu acho que a Rede vai fazer esse debate. Existem diferentes posições.

FOLHA/UOL: A Sra. É A FAVOR DE A REDE TOMAR POSIÇÃO OBJETIVA SOBRE ESSES TEMAS?

MARINA SILVA: Bem, eu não posso dizer que uma organização política não tome uma posição sem entender. Obviamente, que a REDE já possibilita àqueles que têm uma posição contrária por questões de consciência de divergir e que não haverá nenhum enquadramento que obrigue aquela pessoa a defender aquilo que é contra os seus princípios. Agora, uma coisa é clara: Eu não tenho nenhum problema de ter uma militância política com as pessoas que pensam contrários a mim. Aliás, eu sempre fiz campanha para pessoas que tinham um posicionamento completamente diferente do meu. Eu fazia campanha da Marta Suplicy, fiz a campanha do Gabeira e, mesmo quando o PT orientou que deveria apoiar outros candidatos no Rio de Janeiro, eu fui lá fazer a campanha do Gabeira, que defende, inclusive, a descriminalização da maconha. Por quê? Porque eu não estou elegendo padre. Eu não estou elegendo um pastor. Eu não estou elegendo uma, digamos, pessoa para dar orientação espiritual ao país. Eu estou elegendo o governador, o presidente da República. Esse foi o meu posicionamento desde sempre. Quando era católica, sempre me posicionei assim. Como cristã evangélica, do mesmo jeito. Agora, obviamente, do mesmo jeito que as pessoas têm a liberdade de expressar o seu posicionamento, é justo que também o posicionamento contrário possa ser colocado sem que a pessoa venha a ser satanizada igualmente. Por que a gente não faz um debate aberto, respeitoso, sem as rotulações? Eu não fico rotulando moralmente ninguém que defende os temas polêmicos com os quais eu divirjo. Por que eu tenho que ser rotulada? Essa é uma questão. Eu não quero achar que eu seja mais tolerante do que eles.

FOLHA/UOL: A Sra. MENCIONOU PADRES, PASTORES ETC. A SRA. AGORA NÃO É MAIS CATÓLICA, NÃO É? AINDA ASSIM, TEM ALGUMA OPINIÃO DE COMO DEVERIA SER O PERFIL DO NOVO PAPA DA IGREJA CATÓLICA?

MARINA SILVA: Eu venho de uma relação muito profunda com Igreja Católica. Toda a minha base ética na política vem das comunidades de base e eu devo profundamente isso à Igreja Católica pelo excelente trabalho que fez no final da década de 70, década de 80, fazendo com que pessoas como eu, que não tinham nenhuma chance de ser olhada na política, tivessem um lugar para pensar a política e aprender. E aprendi com professores muito bons. Dom Moacyr, Leonardo Boff, Clodovis Boff, Frei Betto, e outras pessoas de altíssimo quilate da nossa, enfim, realidade eclesiástica no campo da teologia progressista. O que eu espero, é que tenha um posicionamento progressista. Depois de João Paulo II, com o seu jeito carismático, mas, ao mesmo tempo, acolhedor das diferenças, com certeza, é uma grande contribuição que se dá para o mundo pela importância política que tem a figura do papa e a importância religiosa que tem para os católicos.

FOLHA/UOL: A Sra. FOI COMPANHEIRA NO PT DE VÁRIOS MILITANTES DO PT QUE FORAM PROCESSADOS E CONDENADOS NO PROCESSO CHAMADO DE MENSALÃO. [VOU] CITAR JOSÉ DIRCEU, JOÃO PAULO CUNHA, JOSÉ GENUÍNO, ENTRE OUTROS. ELES FORAM CONDENADOS À PRISÃO. A Sra. ACHA QUE FOI JUSTA A CONDENAÇÃO?

MARINA SILVA: A Justiça teve acesso aos autos. Eu não tive, digamos, a altura e profundidade que eles tiveram para fazer o seu veredito. Então, eu espero que as instituições tenham feito a justiça, sim. Se você me perguntar se eu lamento, lamento. Claro que eu lamento por essas pessoas, por suas famílias, pelo nosso país, pelas nossas instituições. Lamento o que aconteceu. Por outro lado, é uma grande chance de aprendizagem para todos nós. Inclusive para mim. No Roda Viva, eu fiz uma menção do sofrimento que é o que aconteceu com o Genuíno, certo? Eu conheço o Genuíno de muitos anos, conheço a sua família. E não foi fácil ver o que estava acontecendo. Quando eu vi a carta da Miruna eu fiquei muito emocionada. A carta da filha do Genuíno, né? E isso é um ensinamento para todos nós. Quer por ação ou por omissão, há um preço que se paga quando erros são cometidos. Mesmo que você não tenha cometido diretamente. Então, isso é uma demonstração que devemos ficar todos atentos. Como você falou, que eu sou cristã evangélica, tem um versículo bíblico que diz: "Aquele que pensa que está de pé, cuide para que não caia". Então, nenhum de nós pode se vangloriar de um estado permanente de retidão. Devemos ficar vigilantes o tempo todo. Agora, é claro que a humanidade consegue criar meios muito sofisticados para fazer as suas correções quando não é capaz do exercício da autolimitação, que o que mais nos dá independência e liberdade é quando somos capazes de nos autolimitar. E isso só é possível com as instituições virtuosas. E eu espero, sinceramente, que a ação do Supremo [Tribunal Federal], que tudo que foi feito pela Polícia Federal e pelo Ministério Público sejam uma demonstração de que instituições virtuosas estão aptas a nos corrigir quando falharmos em nossas virtudes.

FOLHA/UOL: ALGUNS SÃO DEPUTADOS FEDERAIS E JÁ FORAM CONDENADOS PELO SUPREMO, EMBORA O PROCESSO AINDA NÃO TENHA SIDO CONCLUÍDO FORMALMENTE. O CONGRESSO ACERTA EM ESPERAR ATÉ O ÚLTIMO MOMENTO PARA RETIRAR ESSES QUE TEM MANDATO LÁ DE DENTRO?

MARINA SILVA: Eu diria que é protelar um processo que talvez acaba passando uma imagem ruim das instituições.

FOLHA/UOL: O QUE SERIA MELHOR?

MARINA SILVA: O que seria melhor é que, guardando a autonomia dos poderes, quando um poder tem o poder de condenar e é ele que é capaz de fazer isso, que o Congresso não resista a esse poder. Da mesma forma que o Judiciário não deve resistir quando legalmente ou constitucionalmente o Congresso fizer as leis mesmo que não seja de agrado da Justiça.

FOLHA/UOL: TRÊS PRESIDENTES: FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, LULA E, AGORA, DILMA ROUSSEFF. QUAL DOS TRÊS FOI MAIS EXITOSO NO EXERCÍCIO DA PRESIDÊNCIA.

MARINA SILVA: Primeiro, a presidente Dilma ainda está quase na metade. Seria injusto comparar com quem passou oito anos, não é? E eu acho que...

FOLHA/UOL: MAS LULA E FERNANDO HENRIQUE ESTÃO NO MESMO NÍVEL OU UM SE SOBREPÕE AO OUTRO?

MARINA SILVA: Eu não gosto dessas comparações. É impossível fazer comparação em política. A política é um processo vivo, não é? E cada um vive as circunstâncias históricas daquele momento, tem que atuar naquele momento que é, digamos assim, "IRREPETÍVEL", não tem como se repetir, se é que existe essa palavra. Então, o Fernando Henrique viveu as suas circunstâncias, o Lula viveu as circunstâncias dele e seria uma leviandade ficar comparando os dois. Eu posso dizer que os dois tiveram graves problemas e tiveram conquistas muito significativas. A conquista da política econômica, da estabilidade econômica, isso ninguém pode retirar do governo do Fernando Henrique e não dá a eles o crédito. O avanço fantástico da política social, de tirar mais de 30 milhões de pessoas da extrema pobreza, de colocar mais de 30 milhões da classe média, isso ninguém pode tirar do Lula. Agora, qual é a diferença do meu posicionamento em relação a isso tudo? É que graças a Deus, estar a frente me possibilita não ter uma visão de oposição por oposição e nem de situação por situação. E eu era assim mesmo quando estava no Governo e era assim mesmo quando estava na oposição. Se as pessoas olharem para a minha trajetória de vida, vão verificar que, como senadora de oposição, eu ajudei a provar muitos projetos que achava interessante do presidente Fernando Henrique Cardoso. Mesmo sendo do Governo, eu criei situações que iam na contramão daquilo que o Governo estava defendendo, mesmo quando era ministra do presidente Lula. Porque a minha lógica não é de oposição por oposição, nem de situação por situação.

FOLHA/UOL: DO MELHOR DO SEU JUÍZO, DADA A CONJUNTURA DE HOJE, QUE FORÇAS A Sra. ACHA QUE ESTARÃO REPRESENTADAS COM CANDIDATO A PRESIDENTE EM 2014?

MARINA SILVA: Com certeza, o PT, que tem a presidência da República. Não só é legítima, mas que tem a força que está sendo expressa nas pesquisas, não é? E, enfim, não é de se esperar que seja o contrário o PSDB. Até porque a polarização PT e PSDB já tomou conta do Brasil. E, enfim, legitimamente, o governador Eduardo Campos está pleiteando construir a sua candidatura. Se você fala isso pensando na REDE, essa é uma decisão que será tomada nesse momento, nós estamos muito focados um projeto político para essa situação de crise que nós estamos vivendo na política brasileira que não é diferente no mundo. A discussão da candidatura é uma possibilidade, mas, por enquanto, apenas uma possibilidade que, pode ter certeza, se tiver uma candidatura melhor na REDE, nós não tergiversaremos um segundo para encaminhá-la.

FOLHA/UOL: EU PERGUNTEI ISSO PARA A SRra. PORQUE NO CASO DO GOVERNADOR DE PERNAMBUCO, EDUARDO CAMPOS, QUE TAMBÉM É PRESIDENTE DO PSB, PARTIDO SOCIALISTA BRASILEIRO, HÁ UMA AVALIAÇÃO, ENFIM, DE PESSOAS QUE ACOMPANHAM O CENÁRIO ELEITORAL HÁ ANOS NO BRASIL DE QUE, NA EVENTUALIDADE DE ELE VIR A SER CANDIDATO, ELE DISPUTARÁ, EM CERTA MEDIDA, ALGUNS ELEITORES QUE TAMBÉM ESTÃO INCOMODADOS COM ESSA POLARIZAÇÃO JÁ ANTIGA, NOS PADRÕES BRASILEIROS, ENTRE PT E PSDB, E QUE DESSA FORMA, SERIA UM CENÁRIO DIFERENTE DE 2010. TERIA UMA DISPUTA TAMBÉM NO CAMPO DE ELEITORES QUE HOJE A REDE VAI DISPUTAR E A Sra. TEVE EM 2010, E QUE ISSO FARIA COM QUE A Sra. TIVESSE UMA LIMITAÇÃO NO DESEMPENHO PERANTE ESSES ELITORES. O QUE A Sra. ACHA DESSA ANÁLISE?

MARINA SILVA: Bem, eu prefiro ir para princípio. Se somos democráticos, devemos defender o direito de que as pessoas possam pleitear, apresentar as suas ideias e seus projetos. E isso, para mim, em nenhum momento será negativo. Teremos mais opções de pessoas apresentando as suas propostas.

FOLHA/UOL: ELE DISPUTA UM POUCO OS VOTOS PARECIDOS COM OS SEUS OU NÃO?

MARINA SILVA: Mas eu acho que, se a gente ficar tratando o eleitor como se eles fossem objetos que a gente fica disputando aqui, como se as pessoas não tivessem vontade própria. As pessoas têm vontade própria e devemos trabalhar para que, cada vez mais, elas não sejam percebidas como eleitoras da Marina, nem da Dilma, nem do Aécio, nem do Eduardo Campos. Que sejam sujeitos políticos que merecem ser respeitados. E que olhando para os candidatos, para as suas propostas, para as suas ideias, vão fazer livremente as suas escolhas. Não tem nada a priori. Os 20 milhões de votos foram dados em 2010. Essa cena não vai se repetir. O que vai acontecer vai ser algo inteiramente novo, diferente, ainda que com base naquilo que foi acumulado e que deve ser preservado. EU NÃO TRATO OS ELEITORES COMO SE ELES FOSSEM UMA HERANÇA. EU TRATO OS ELEITORES COMO PESSOAS, COMO SUJEITOS POLÍTICOS. É PARA ISSO QUE EU ESTOU FAZENDO ESSE ESFORÇO. EU ESTOU HÁ MAIS DE 30 ANOS NA VIDA PÚBLICA ACREDITANDO PROFUNDAMENTE QUE AS PESSOAS PODEM FAZER AS SUAS ESCOLHAS NÃO PORQUE JÁ TENHAM COMPROMISSO À PRIORI COM ESSE OU AQUELE CANDIDATO. MAS PORQUE ELAS SÃO CAPAZES DE FAZER UMA LEITURA VIVA. DA POLÍTICA VIVA. E, A PARTIR DAÍ, AJUDAR A CRIAR O MOMENTO DE ACORDO COM AS CIRCUNSTÂNCIAS QUE É DADA E QUE É OFERECIDA.

FOLHA/UOL: MARINA SILVA, EX-SENADORA, EX-MINISTRA. MUITO OBRIGADO POR SUA ENTREVISTA NA FOLHA DE S. PAULO E AO UOL.

MARINA SILVA: Obrigada à você.

 

Fonte: entrevista de Marina Silva à Folha e ao UOL, conduzida pelo jornalista Fernando Rodrigues.

 

 

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

CUBANO POR 30 DIAS...



COM O DESAFIO DE PASSAR UM MÊS EM HAVANA COM APENAS 15 DÓLARES, O REPÓRTER NORTE-AMERICANO PATRICK SYMMES NARRA SEU MERGULHO NA SOCIEDADE CUBANA E OS DIVERSOS "JEITINHOS" A QUE PRECISOU RECORRER PARA OBTER COMIDA, SE LOCOMOVER E ATÉ MESMO PARA DESTILAR RUM CASEIRO.

NAS DUAS PRIMEIRAS DÉCADAS da minha vida, acho que nunca passei mais de nove horas sem comer. Mais tarde, fiquei sujeito a períodos mais longos de fome, mas sempre voltei para casa, fui recebido com festa, comi tudo o que quis, no momento que quis, e recuperei o peso que tivesse perdido. Além disso, segui a trajetória habitual de uma vida americana, ganhando meio quilo de peso por ano, década após década. Quando decidi ir a Cuba e viver por um mês consumindo apenas aquilo que um cubano comum pode consumir, meu peso havia atingido 99 quilos; nunca tinha sido tão alto. Em Cuba, o salário médio é de US$ 20. Médicos chegam a ganhar US$ 30, e muitas outras pessoas ganham só US$ 10. Decidi que me concederia o salário de um jornalista cubano: US$ 15, a renda de um intelectual oficial. Sempre quis ser um intelectual, e US$ 15 representava uma vantagem significativa sobre os proletários que constroem paredes de alvenaria ou cortam cana por US$ 12, e quase o dobro dos US$ 8 da pensão de muitos aposentados. Com esse dinheiro, eu teria de comprar minha ração básica de arroz, feijão, batata, óleo, ovos, açúcar, café e tudo o mais de que precisasse. A primeira meia hora em solo cubano foi passada nos detectores de metais. Depois, como parte de um novo regime de vigilância que eu não havia encontrado em meus 15 anos anteriores de visita ao país, passei por um interrogatório intenso, porém amadorístico. Não era nada pessoal: todos os estrangeiros que chegaram no pequeno turboélice vindo das Bahamas foram separados do grupo e extensamente interrogados. Como em Israel, um agente à paisana me fez perguntas detalhadas, mas que não versavam sobre assuntos importantes. ("Para que cidade você vai? Onde ela fica?"). O objetivo era me provocar, revelar incoerências ou causar nervosismo. Ele não olhou minha carteira ou perguntou por que, se eu planejava passar um mês em Cuba, tinha menos de US$ 20 comigo. O olhar do agente se voltou aos demais passageiros. Eu tinha passado. "Trinta dias", eu disse à senhora que carimbou meu visto de turista. O prazo máximo. Havia uma placa pendente do teto do aeroporto, com o desenho de um ônibus. Mas nada de ônibus. Só mais tarde, explicou a mulher da cabine de informações. Haveria um ônibus -só um- naquela noite, por volta das 20h, para levar os funcionários do aeroporto de volta a suas casas. Eu teria de esperar seis horas. O centro de Havana fica a 16 quilômetros do aeroporto. PORQUE UM TÁXI CUSTARIA US$ 25 --OU SEJA, MAIS QUE O MEU ORÇAMENTO PARA TODO O MÊS--, EU TERIA DE IR A PÉ. A mesma mulher tirou do bolso do uniforme duas moedas de alumínio, e me deu: 40 centavos de peso, o equivalente a dois centavos de dólar. Na rodovia, a alguns quilômetros do aeroporto, eu talvez encontrasse um ônibus para a cidade. E em Havana eu poderia encontrar, ou teria de encontrar, uma maneira de sobreviver por um mês. Ergui a mochila aos ombros e comecei a caminhar, com as moedas de alumínio tilintando no bolso. Saí do terminal e atravessei o estacionamento, chegando à via de acesso. Comecei a caminhar pela estrada, deixando o mundo externo para trás a cada sólido passo. A intervalos de alguns minutos, táxis se aproximavam, buzinando, ou carros particulares paravam ao meu lado e me ofereciam uma jornada até a cidade por apenas metade do preço oficial. Eu continuei caminhando, devagar, deixando para trás os velhos terminais e contemplando os campos de vegetação esparsa. Os outdoors trombeteavam mensagens do passado: BUSH TERRORISTA. Depois de caminhar 40 minutos, cruzei por sobre os trilhos da ferrovia em uma passarela e, ao chegar à rodovia, tive sorte. O ônibus para Havana estava no ponto. Passada uma hora, eu havia chegado ao centro de Havana e estava de novo caminhando, em busca de um velho amigo. RACIONAMENTO As primeiras pessoas com quem conversei na cidade --desconhecidos que vivem perto da casa do meu amigo mencionaram o sistema de racionamento. Sem que eu perguntasse, eles me mostraram suas cadernetas de racionamento e se queixaram bastante. A caderneta --CONHECIDA COMO "LIBRETA"-- É O DOCUMENTO FUNDAMENTAL DA VIDA CUBANA. QUASE NADA MUDOU NO SISTEMA DE RACIONAMENTO: AINDA QUE AGORA SEJA IMPRESSA EM FORMATO VERTICAL, A CADERNETA É IDÊNTICA ÀS EMITIDAS ANUALMENTE DURANTE DÉCADAS. O QUE MUDOU FOI A TINTA: HAVIA MENOS TEXTO NA CADERNETA. O NÚMERO DE ITENS ERA MENOR, E AS QUANTIDADES TAMBÉM ERAM MENORES, MENOS DO QUE EM 1995, A ÉPOCA DE FOME DO "PERÍODO ESPECIAL". Desde então, a economia cubana se recuperou, mas o sistema cubano de racionamento ainda não. Em 1999, o ministro do Desenvolvimento de Cuba me disse que a ração mensal oferecia comida suficiente para apenas 19 dias, mas previu que esse total logo subiria. Na verdade, caiu. Ainda que hoje o volume total de alimentos disponíveis em Cuba seja mais alto e o consumo de calorias per capita também tenha crescido, isso não se deve ao racionamento. O crescimento ocorreu em mercados privatizados e hortas cooperativas, e por meio de importações maciças; a produção de alimentos pelo Estado caiu 13% no ano passado e a ração encolheu junto. A opinião geral é de que a ração mensal hoje só dá para 12 dias de comida. A MINHA VIAGEM SERVIRIA PARA QUE EU FIZESSE O MEU PRÓPRIO CÁLCULO: COMO ALGUÉM PODE SOBREVIVER DURANTE UM MÊS COM COMIDA PARA APENAS 12 DIAS? CADERNETA Cada família recebe uma caderneta de racionamento. As mercadorias são distribuídas numa série de mercearias (uma para laticínios e ovos, outra para "proteínas", outra para pão; a maior delas cuida dos enlatados e outros produtos embalados, de café e óleo a cigarros). Cada loja conta com um administrador que anota na caderneta a quantidade de produtos retirada pela família. Os vizinhos do meu amigo --marido, mulher e neto-- receberam a ração padronizada de produtos básicos, que consiste, por pessoa, em: DOIS QUILOS DE AÇÚCAR REFINADO MEIO QUILO DE AÇÚCAR BRUTO MEIO QUILO DE GRÃOS UM PEDAÇO DE PEIXE TRÊS PÃEZINHOS RIRAM MUITO QUANDO PERGUNTEI SE RECEBIAM CARNE DE VACA. "FRANGO", DISSE A MULHER, MAS ISSO PROVOCOU UIVOS DE PROTESTO: "QUAL FOI A ÚLTIMA VEZ QUE RECEBEMOS FRANGO?", O MARIDO QUESTIONOU. "POIS ENTÃO, É VERDADE", ELA DISSE. "JÁ FAZ ALGUNS MESES." A RAÇÃO DE "PROTEÍNA" É DISTRIBUÍDA A CADA 15 DIAS E CONSISTE NUMA CARNE MOÍDA DE MISTERIOSA COMPOSIÇÃO, QUE INCLUI UMA BELA PROPORÇÃO DE PASTA DE SOJA (SE A CARNE FOR SUÍNA, A MISTURA RECEBE O FALSO NOME DE "PICADILLO"; SE FOR FRANGO, É CONHECIDA COMO "PUELLO CON SUERTE", OU FRANGO COM SORTE). A RAÇÃO BASTA PARA O EQUIVALENTE A QUATRO HAMBÚRGUERES POR MÊS, MAS ATÉ AQUELE MOMENTO, EM JANEIRO DE 2010, CADA UM SÓ HAVIA RECEBIDO UM PEIXE --EM GERAL, UMA CAVALA SECA E OLEOSA. E HÁ OS OVOS. A MAIS CONFIÁVEL DAS FONTES DE PROTEÍNAS, ELES SÃO CONHECIDOS COMO "SALVA-VIDAS". ANTIGAMENTE, A RAÇÃO ERA DE UM OVO POR DIA; DEPOIS, UM OVO A CADA DOIS DIAS; AGORA, É DE UM OVO A CADA TRÊS DIAS. EU TERIA DEZ DELES COMO RAÇÃO PARA O MÊS SEGUINTE. Meu amigo me conduziu a uma residência particular no bairro de Plaza, onde eu alugaria um apartamento por um mês --a única despesa que deixo fora de minhas contas aqui. O apartamento era espartano, em estilo cubano: dois cômodos, cadeiras sem almofadas, um fogareiro de duas bocas numa bancada e um frigobar. No meu segundo dia, comecei comendo um bagel de gergelim, e distraidamente o devorei inteiro, como se fosse possível comprar outro. De acordo com um aplicativo de contagem de calorias instalado em meu celular, o bagel tinha 440 calorias. Tudo que comi pelos 30 dias seguintes foi anotado com ajuda do pequeno teclado, registrado, tabulado em termos diários e semanais, dividido em proteínas, carboidratos e gordura, avaliado por meio de gráficos de barras. Um homem ativo do meu tamanho (1,88 metro, 95 quilos) precisa de cerca de 2,8 mil calorias diárias para manter o peso. Eu ainda não tinha conseguido quaisquer outros suprimentos de comida, e concluí meu café da manhã quando a faxineira de meu senhorio me deu dois pequenos copinhos de café muito açucarado (75 calorias). Da mesma forma que os cubanos aproveitam lacunas nos regulamentos para sobreviver, decidi explorar minha evidente condição de estrangeiro em meu benefício, e passei o dia entrando e saindo de hotéis nos quais poucos cubanos estão autorizados a entrar. Isso me dava acesso a ar condicionado, papel higiênico e música. Passei pela segurança no Habana Libre, o antigo Hilton, e subi de elevador até o topo, que oferecia lindas vistas de Havana ao crepúsculo. A boate ainda não estava aberta, mas entrei mesmo assim; apanhei um ensaio em curso. Um roqueiro russo, com uma banda de apoio de mais de 30 músicos, estava passando o som do show que faria mais tarde. O hotel serviu chá e água mineral em garrafas aos músicos, e aproveitei a oportunidade para beber bastante. O sabor adstringente do chá --mediado por muito açúcar- finalmente começou a fazer sentido para mim. Era a bebida dos noviços em um mosteiro, das pessoas famintas e enregeladas. Seu objetivo é matar o apetite. Havia restos de um lanche. Encontrei apenas um sanduíche e meio de queijo, abandonado em um guardanapo perto da seção de cordas; coloquei o guardanapo no bolso. Caminhei por uma hora, atravessando Havana para voltar ao meu quarto, passando por dezenas de lojas novas --açougues, bares, cafés, pizzarias e outros prolíficos fornecedores de alimentos vendidos apenas em moeda forte. Detive-me por longo tempo, contemplando os imensos peitos de peru expostos na vitrine de uma das lojas. Quando enfim cheguei ao meu quarto, os sanduíches se haviam desintegrado no meu bolso, em uma massa de migalhas, manteiga e queijo sintético, mas os comi mesmo assim, devagar, prolongando a experiência. Eu sempre havia desdenhado os cubanos que se dispõem a aplaudir o regime em troca de um sanduíche, mas, já no meu segundo dia na ilha, eu me sentia disposto a denunciar Obama em troca de um biscoito. NA MANHÃ DO TERCEIRO DIA, caminhei mais de duas horas por Havana em busca de comida, queimando 600 calorias, o equivalente aos sanduíches consumidos um dia antes. Eu havia presumido, erroneamente, que poderia simplesmente comprar a comida de que precisaria para o mês. No entanto, por ser norte-americano, eu era inelegível para o racionamento, nos termos do qual o arroz custa dois centavos de dólar o quilo. Como "cubano" vivendo com salário de US$ 15 ao mês, eu não teria como comprar comida fora do sistema, nas dispendiosas lojas que vendem alimentos em dólares. Os cubanos chamam essas pequenas lojas, que vendem de tudo, de pilhas e carne bovina a óleo de cozinha e fraldas, de "EL SHOPPING". Depois de horas de frustração, e incapaz de comprar qualquer comida, voltei de ônibus ao apartamento. Eu não tinha almoçado. Por fim, já que não conseguia mais ficar parado, corri para fora da casa e, seguindo uma dica, encontrei uma casa a alguns quarteirões de distância em cujo portão havia um cartaz com a palavra "café". Na parte traseira da casa havia uma janela gradeada, e eu passei o equivalente a 40 centavos de dólar pela janela. Uma mulher me serviu um pãozinho com apresuntado. Um copo de suco de papaia me custou mais 12 centavos de dólar. Embora eu tentasse comer devagar, o almoço desapareceu em questão de minutos. A ESSE RITMO --50 CENTAVOS DE DÓLAR POR REFEIÇÃO-, MINHA RESERVA DE DINHEIRO SERIA CONSUMIDA RAPIDAMENTE, E SAÍ DAQUELE QUINTAL PROMETENDO A MIM MESMO QUE JANTARIA QUASE NADA. De manhã, notícias piores me aguardavam quando tentei me vestir. Descobri que o zíper de minha calça estava enguiçado. Como parte do meu esforço para parecer e me sentir cubano, só havia levado duas calças na bagagem. Calças são um dos muitos itens não alimentícios também distribuídos como parte da ração, e isso em geral quer dizer apenas uma calça por ano. A maioria dos cubanos se vira com apenas um ou dois exemplares de cada peça de roupa. Por isso, o zíper quebrado teria de ser reparado --em janeiro, não havia distribuição de calças. Depois do fracasso de alguns esforços nada competentes para consertar o zíper sozinho, compreendi que teria de gastar dinheiro, ou trocar alguma coisa, pelo trabalho de um alfaiate. Café da manhã: duas xícaras de café açucarado. Total de 75 calorias. MERCADO NO QUARTO DIA, saí para comprar comida, experiência ridícula. Por sorte, o apartamento que aluguei ficava perto do maior e melhor mercado de Havana, que não é nem tão grande e nem tão bom assim. O mercado era um "agro", ou seja, um sacolão. Há quem compare esses mercados às feirinhas de produtos orgânicos norte-americanas, mas não havia conversa amistosa entre comprador e vendedor, e sim um ruidoso, lotado e barulhento corredor repleto de bancas vendendo todas o mesmo estreito elenco de produtos, a preços aprovados pelo Estado: abacaxis, berinjelas, cenouras, pimenta verde, tomate, cenoura, iúca, alho, bananas-da-terra e não muito mais. Numa sala separada, havia carne de porco à venda, pilhas trêmulas de carne rosada e pálida, manipulada por homens de mãos nuas. Carne era um produto além de meu alcance, embora houvesse "gordura" à venda por US$ 1 (27 pesos) o quilo. Esperei na fila para converter todo o meu dinheiro --18 pesos conversíveis, a moeda forte cubana-- em pesos comuns. A pilha de cédulas desgastadas e sujas que resultou da transação equivalia a 400 pesos, ou cerca de US$ 16, pela cotação do mercado negro de Havana. Enfrentei as multidões e comprei uma berinjela (10 pesos), quatro tomates (15), uma cabeça de alho (2) e algumas cenouras (13). No balcão da padaria, a mulher que atendia me disse que pães só podiam ser vendidos a portadores de cadernetas de racionamento --mas mesmo assim me vendeu cinco pãezinhos, avidamente apanhando cinco pesos de minha mão. Só fui bem tratado pelo vendedor de tomates, que me ofereceu um tomate de brinde. DOIS PESOS Cuba tem duas moedas, o peso valioso, oficialmente conhecido como CUC, e chamado de cuc, fula, chavita e convertible; ele foi introduzido para eliminar a presença de moeda estrangeira no país e seu valor deveria equivaler ao do dólar norte-americano, em termos gerais, ao menos antes da comissão de 20% cobrada pela conversão. A outra moeda é o humilde peso comum (conhecido como peso). Os salários dos cubanos são pagos em pesos comuns, e para comprar qualquer coisa importante eles precisam convertê-los em CUC, à taxa de 24 por um. Uma caixinha de macarrão frito no bairro chinês de Havana custava "72/2,5",em pesos comuns e CUC, respectivamente, e o preço nos dois casos representava cerca de 15% da renda mensal média. Comprei 1,5 quilo de arroz por pouco mais de 10 centavos de dólar, e um saco de feijão vermelho. COM ISSO, A CONTA FINAL SUBIU A CATASTRÓFICOS US$ 2, POR UMA QUANTIDADE DE COMIDA QUE PRODUZIRIA APENAS ALGUMAS REFEIÇÕES. Alguns moleques me seguiram até a saída, murmurando "camarão, camarão, camarão", em um esforço para me vender alguma coisa. Do lado de fora, um homem viu que eu me aproximava e subiu numa árvore, descendo com cinco limões que me ofereceu. (Não era um limoeiro, e sim o lugar em que guardava seus produtos de mercado negro.) Cheguei em casa cambaleando com o peso do arroz e dos legumes, com cara, segundo a mulher de meu senhorio, de homem divorciado a ponto de começar vida nova. DINHEIRO As calorias acumuladas inevitavelmente me levaram a refletir sobre o outro lado da equação: dinheiro. Como eu conseguiria sobreviver dali a duas semanas, se a cada vez que fizesse compras gastasse US$ 2? Eu continuava a fazer tudo a pé, o que me custava 60 minutos apenas para chegar aos hotéis de turistas em Vedado (nos quais não encontrei mais nenhum sanduíche extraviado), ou para encostar o rosto contra as grades de ferro de algum restaurante, assistindo, em companhia de quatro ou cinco cubanos, à banda que tocava mambo para os estrangeiros. A cada dia eu era abordado por cubanos que, de uma ou outra maneira, me pediam dinheiro. E sabia que minhas escolhas pessoais seriam igualmente desagradáveis, algumas semanas adiante. Será que eu deveria me posicionar em uma esquina e pedir dólares a desconhecidos? Até que ponto uma pessoa precisa estar faminta para se tornar parecida com a adolescente pela qual passei em uma calçada de Vedado naquela tarde; ela trazia um bebê no colo, mas se voltou para mim e disse: "Deseas una chica sucky sucky?" CAFÉ Se era questão de chupar alguma coisa, eu já sabia exatamente o quê. Apanhei-me contemplando os Ladas que passavam, para ver se as tampas de seus tanques de gasolina tinham trancas. Com uma mangueira e um recipiente plástico, eu poderia obter cinco litros de gasolina e vendê-la por intermédio de um amigo no bairro chinês. Mas todos os carros de Cuba têm trancas nas tampas do tanque de combustível, ou ficam protegidos atrás de portões trancados, à noite. Já havia homens demais, e bem mais durões que eu, envolvidos nesse tipo de trabalho. Cuba não é terra para ladrões amadores. Eu precisava de café, mas nenhuma loja tinha estoque desse produto essencial. Nem mesmo a loja do meu bairro que opera com moeda forte tinha café, e visitas repetidas aos supermercados que vendem em dólares, em Vedado, e às lojas de diversos hotéis resultaram em zero café, por todo o mês. Certa vez vi um pacote de meio quilo de Cubacafe, a marca de exportação, à venda em um cinema da Velha Havana. Mas custava 64 pesos, e mesmo que a abstinência de café estivesse me matando, eu não tinha como pagar tão caro, ou andar toda aquela distância de novo. Da janela do meu banheiro, percebi que a loja de produtos racionados estava aberta, e fui até lá. Em uma prateleira, havia cinco sacos de café. Eram da marca doméstica, Hola, um café claro, em contraposição ao pó escuro do Cubacafe, e o preço era de pouco mais de um peso pelo primeiro pacote de 100 gramas, e de cinco pesos por pacote adicional. Havia cerca de uma dúzia de pessoas disputando o pão e o arroz, e por isso pude estudar as duas lousas nas quais a loja anunciava os produtos disponíveis. A maior delas mencionava os produtos básicos --os primeiros dois quilos de arroz custam 25 centavos de peso; cada comprador pode comprar um quilo adicional por 90 centavos de peso. O limite de compras era de três quilos de arroz ao mês, para prevenir que as pessoas comprassem arroz e o revendessem em busca de lucros. A lousa menor informava sobre os "produtos liberados", e continha uma lista menor de coisas como cigarros e outros bens que podem ser adquiridos sem restrições. Eu disse "el último", e tomei lugar na fila por trás do comprador que antes era o último. Logo chegou uma mulher com uma sacola plástica nas mãos e disse "el último", e se tornou a última da fila. O homem que me atendeu sorria, mas parecia agitado. Era alto, negro, e usava uma barba rala, mal cuidada. Quando pedi café, fez um gesto negativo com as mãos. Não era preciso explicar: um estrangeiro não tem direito a ração, e de qualquer jeito não havia café. Tentei ganhar tempo, esticando uma conversa à qual ele só respondia com gestos. Perguntei se não havia café em parte alguma, e disse que havia procurado por toda a cidade, sem encontrar. Acrescentei que realmente gostava de café. Sabe? "Os cubanos bebem muito café", ele por fim respondeu. Tendo estabelecido uma conexão, eu acenei com a cabeça e perguntei se não seria possível conseguir café em algum lugar. "Não", ele respondeu. Sério? Talvez alguém, em algum lugar? Nem precisa ser muito. Ele meneou a cabeça; o gesto do talvez. Quem? "A Sra. __", respondeu. E onde posso encontrá-la? Como se estivesse guiando um cego, ele saiu de trás do balcão, me apanhou pelo braço e me conduziu até a rua. Caminhamos apenas 10 passos, sem mudar de calçada. Ele entrou na primeira porta, e distraidamente apertou o traseiro de uma mulher que estava passando. ("Ei!", ela exclamou, furiosa. "Quem você acha que é?") Paramos na porta de um apartamento localizado imediatamente atrás da loja de produtos racionados. Ele bateu. A PORTA FOI ABERTA POR UMA MULHER COM UM BEBÊ NO COLO. "CAFÉ", ELE DISSE. PAGUEI COM UMA NOTA DE 20 PESOS. ELA ME DEU UM PACOTE DE HOLA E CINCO PESOS DE TROCO. "SÓ ISSO?" ERA TRÊS VEZES MAIS QUE O PREÇO COBRADO NA LOJA, A ALGUNS PASSOS DE DISTÂNCIA, MAS DESCOBRI MAIS TARDE QUE OS CUBANOS TAMBÉM TÊM DE PAGAR O MESMO ÁGIO. O homem fez que sim com a cabeça. Seu nome era Jesús. Voltamos à loja. "Pão?", perguntei. Ele perguntou ao seu chefe, que respondeu com um "não" em volume alto o bastante para que a loja toda ouvisse. Perguntei de novo. Ele repetiu a pergunta ao chefe. Não ouvi um novo não. Passei-lhe a nota de cinco pesos e recebi cinco pãezinhos. Depois disso, pude comprar tudo que queria. Em companhia de Jesús, ninguém perguntava coisa alguma. Ninguém me pediu para ver minha caderneta de racionamento, nas compras dos itens básicos, e pelo resto do mês paguei o mesmo preço que os cubanos, pela mesma merda de comida. PEDESTRE No sexto dia, fui a pé aos subúrbios, saindo de meu bairro, Plaza, e passando por Vedado rumo ao oeste, e pelo imenso cemitério de Colón, que abriga os mausoléus e os anjos alados das famílias ricas do passado cubano, bem como os sepulcros de concreto da classe média. Um jovem chamado Andy caminhou comigo por algum tempo, entusiasmado por aprender mais sobre os Estados Unidos. ("TODOS QUEREMOS VIVER LÁ"); ele me convidou para conhecer a barbearia de um amigo. Mais tarde, de novo sozinho, passei por alguns cafés, e estudei com atenção todas as pequenas barracas. Uma delas oferecia "pão com hambúrguer" por 10 pesos, o menor preço que havia visto até então. Mas ainda assim seria um gasto alto demais para aquele dia. COMIDA ROUBADA Fui perseguido por duas mulheres que acenavam com uma lata imensa de molho de tomate e gritavam "15 pesos! É para os nossos filhos!" Não parei, mas depois percebi que havia cometido um erro. Ao preço de 15 pesos por uma lata em tamanho restaurante, o molho de tomate seria uma pechincha. Comida roubada é a mais barata. E nada poderia ser mais normal em Cuba do que caminhar carregando uma lata gigante de alguma coisa. Poucos quarteirões adiante, cheguei por acaso ao Museu do Ministério do Interior. A equipe era formada por mulheres com o uniforme do Minint, com ombreiras verdes e saias na altura do joelho. Informaram-me que o ingresso custava dois CUC. Eu não tinha como pagar, é claro. E quanto custa o ingresso para os cubanos? Pergunta errada. Ninguém pechincha com o Minint. Eu disse que voltaria outro dia, mas fiz hora no saguão de entrada, que serve como local para exposição: uma bancada de metralhadoras, fotos da grande sede do Minint, perto do meu apartamento, e citações em letras grandes de frases de Raúl Castro e outras autoridades, com elogios aos patriotas do Minint por protegerem o país. Uma das mulheres, que usava o cabelo preso em um coque severo, estava me observando. Embora eu não tivesse fotografado nada e nem tomado notas, ela parecia astuta. "Quem é você?", ela perguntou. Eu sorri e comecei a caminhar para a saída. "Você é jornalista?", ela quis saber. "Turista", disse, olhando por sobre os ombros e caminhando apressado para a saída. "Você tem credencial para vir aqui?", ela me perguntou, de longe. Continuei a caminhar rumo oeste, por mais meia hora. Estava coberto em suor quando cheguei à casa de Elizardo Sánchez, um dos alvos do Minint. PROGRESSO Quando contei a Sánchez que havia caminhado até sua casa, como parte de um plano para passar 30 dias vivendo e comendo como um cubano, ele me mostrou sua caderneta. "O NOME DISSO É CADERNETA DE SUPRIMENTOS", disse ele, "mas é um sistema de racionamento, o mais duradouro do mundo. Os soviéticos não tiveram racionamento por tanto tempo quanto os cubanos. Nem mesmo o racionamento chinês durou tanto." A escassez surgiu logo depois da revolução; o sistema para a distribuição controlada de bens básicos já estava em funcionamento em 1962. Depois de 50 anos de Progresso, o país está falido, na prática. Em 2009, ervilhas e batatas foram retiradas da ração e os almoços baratos nos locais de trabalho foram reduzidos às dimensões de lanches rápidos. "Havia rumores sobre retirar coisas da ração, ou eliminar o sistema de vez", disse Sánchez, sobre boatos que cativam os cubanos. Mas esses rumores desapareceram em 1º de janeiro de 2010, quando novas libretas foram distribuídas, a exemplo de todos os outros anos. ARTES DOMÉSTICAS Sánchez mantém alegre ignorância quanto às artes domésticas. "Dois quilos de arroz a 25 centavos", ele disse, tentando recordar sua ração mensal. "Acho. E mais meio quilo a 90 centavos. Acho. Vamos perguntar às mulheres. Quanto a isso, elas dominam". Ele chamou a mulher com quem vive, Barbara. Além de trabalhar como advogada em defesa de prisioneiros políticos, ela cozinha e ajuda sua mãe e uma sócia a manter uma padaria na cozinha de sua casa. Elas compraram uma saca de trigo "à esquerda", o que significa que se trata de farinha roubada, comprada de um contato. O custo foi de 30 pesos. Com isso e uma porção de carne moída comprada clandestinamente no açougue, elas fazem pequenas empanadas vendidas a três pesos a unidade, ou cerca de oito por US$ 1. É ASSIM QUE CUBA SE AJEITA: AS LOJAS DE PRODUTOS RACIONADOS TÊM MORADORES DOS BAIRROS COMO FUNCIONÁRIOS; ELES ROUBAM INGREDIENTES E OS VENDEM AOS VIZINHOS, QUE PRODUZEM ALGUMA COISA COM ELES E REVENDEM A ESSES E OUTROS VIZINHOS. Oito empanadas seriam um bom almoço, mas US$ 1 era preço fora do meu orçamento. Barbara me deu duas delas, e eu as demoli com uma mordida. Ela ouviu com expressão neutra, quando expliquei minha tentativa de viver dentro dos limites do racionamento. "É UM BOM PLANO DE DIETA", comentou. Outro dissidente que estava visitando a casa, Richard Rosello, entrou na conversa. Ele tem um caderno no qual anota os preços dos produtos nos mercados paralelos, também conhecidos como mercados clandestinos ou mercados mala preta. "UM PROBLEMA É A COMIDA", disse Rosello. "MAS TAMBÉM TEMOS O PROBLEMA DE COMO PAGAR A CONTA DE LUZ, O GÁS, O ALUGUEL. O PREÇO DA ELETRICIDADE ESTÁ DE QUATRO A SETE VEZES MAIS ALTO QUE NO PASSADO". Elizardo paga cerca de 150 pesos por mês de eletricidade --um quarto do salário médio cubano. Como sobreviver, portanto? "Os cubanos inventam alguma coisa", disse Barbara. Um dos truques é vender os bens racionados, comprados a baixo preço, pelo valor de mercado. Foi assim que enfim consegui comprar minha porção de 10 ovos. Sem a caderneta de racionamento, não tinha como comprá-los legalmente. Mas ao anoitecer do dia anterior, eu havia esperado perto da loja de ovos local, onde troquei um olhar com uma mulher idosa que estava saindo com 30 ovos --um mês de suprimento para três pessoas. Ela os comprou a 1,5 peso por unidade, e me vendeu 10 deles por dois pesos cada. Voltou à loja e imediatamente comprou mais ovos, lucrando três ovos e alguma sobra de dinheiro com a transação. Os dois caminhamos de volta para nossas casas cuidadosamente, com medo de desperdiçar toda a ração mensal de proteína por conta de um único tropeço. Barbara aproveitou para apontar um erro terrível em meu plano. NOS ÚLTIMOS ANOS, A MAIORIA DAS FONTES FORA DE CUBA REPORTA QUE A RAÇÃO INCLUI 2,5 QUILOS DE FEIJÃO PRETO. MAS HÁ ANOS ISSO NÃO É VERDADE. A PORÇÃO DO MÊS ERA DE APENAS 200 GRAMAS. DEZ MIL CALORIAS HAVIAM DESAPARECIDO DO MEU MÊS EM UM PISCAR DE OLHOS. Para atenuar o golpe, Barbara decidiu me convidar para um "típico" almoço cubano. O primeiro prato é arroz --a dois ou 2,5 quilos por mês, esse grão é o alimento básico da dieta cubana. A porção diária de arroz reservada a cada cidadão poderia ser guardada em uma lata de leite condensado. Trata-se de arroz vietnamita de baixa qualidade, conhecido como "creole", "feio" ou "microjet", este último termo uma referência zombeteira a um dos planos de Fidel para irrigar safras agrícolas por meio de um sistema de aspersão por gotas. O almoço típico inclui meia lata de arroz (a outra metade fica para o jantar); era uma massa grudenta, mas minha fome ajudou a considerá-lo saboroso. Depois, uma terrina de sopa de feijão. Cada terrina continha apenas alguns feijões, mas o caldo era rico, reforçado com ossos de boi. ("20 PESOS O QUILO, PARA OS OSSOS", DISSE BARBARA. "MUITA GENTE NÃO TEM COMO COMPRÁ-LOS".) Eu não comia carne bovina havia seis dias. Depois, ela me deu meia batata doce. "MUITO MELHOR QUE A BATATA COMUM, EM TERMOS DE NUTRIÇÃO!", disse Elizardo, de algum lugar do corredor. Também me serviram um ovo frito, ainda que Elizardo tenha apontado, em novo grito, que "SE VOCÊ COMER UM OVO HOJE, NÃO PODERÁ COMER AMANHÃ". Ou depois de amanhã. O ovo caiu muito bem. Dadas as dimensões reduzidas do meu estômago, a refeição toda, incluindo as duas pequenas empanadas, pareceu perfeitamente adequada. Mastiguei os ossos, extraindo pequenos pedaços de carne. Era minha melhor refeição em alguns dias. Barbara guardou cuidadosamente o óleo da frigideira. Richard, com seu caderninho de preços, expôs a matemática dessa forma de alimentação. Uma "cesta mensal" de comida racionada (que dura apenas 12 dias) custa 12 pesos por pessoa, de acordo com as contas do governo. Nos 10 dias seguintes de cada mês, as pessoas precisam comprar o mesmo volume de comida por 220 pesos, nos diversos mercados livres, paralelos e negros. E ainda assim isso só conduz o cidadão ao 22º dia do mês. As despesas mensais envolvidas em manter o mesmo padrão de alimentação seriam de 450 pesos --o que supera a renda de milhões de cubanos, e isso sem incluir roupas, transportes ou produtos para a casa. Ninguém mais consegue comprar pratos e xícaras. Eles são roubados de empresas estatais, quando possível, e vendidos no mercado negro. Quanto a roupas, é preciso comprá-las usadas, em mercados de troca conhecidos como troppings, um trocadilho com o apelido das lojas que vendem em moeda forte. Pessoas cuja comida acaba vasculham latas de lixo ou se tornam alcoólatras para atenuar a dor, disse Richard. Elizardo voltou à sala. "NÃO ESTAMOS FALANDO DO HAITI, OU DO SUDÃO", disse. "As pessoas não caem nas ruas, mortas devido à fome. Por quê? Porque o governo garante dois ou 2,5 quilos de açúcar, que tem alto teor calórico, e uma porção diária de pão, e arroz suficiente. O problema em Cuba não é a comida ou as roupas. É a completa falta de liberdade cívica, e portanto de liberdade econômica, o que é exatamente o motivo para que exista a libreta, para começar". Como no resto do mundo, o problema da comida na verdade é um problema de acesso, de dinheiro. E o problema de dinheiro é um problema político. NO SÉTIMO DIA, eu repousei. Deitado na cama com Victor Hugo, perdido na contemplação daquele teste da bondade humana, era fácil esquecer por uma hora que minhas gengivas doíam, que minha garganta estava repleta de saliva. Havana está mudando, como as cidades costumam. A região central foi colocada sob o controle de Eusebio Leal Spengler, o historiador da cidade. Leal recebeu prioridade especial para materiais de construção, mão de obra, caminhões, ferramentas, combustível, encanamentos e até mesmo torneiras e vasos sanitários. Mas não é por isso que as pessoas o amam. Em lugar disso, explicou meu amigo, o acesso "privilegiado" a suprimentos significa simplesmente que há mais para roubar. UMA AMIGA ESTAVA REFORMANDO A CASA NA ESPERANÇA DE ALUGAR APOSENTOS PARA ESTRANGEIROS, E PASSADOS ALGUNS MINUTOS OUVIMOS UM CAMINHÃO FREANDO NA RUA, E O ESTRONDO DE UMA GRANDE BUZINA. O MARIDO DELA ME FEZ UM SINAL APRESSADO, E ABRIMOS JUNTOS A PORTA DA FRENTE. HAVIA UM CAMINHÃO PARADO À PORTA. EM 60 SEGUNDOS, TRÊS PESSOAS, ENTRE AS QUAIS EU, DESCARREGARAM 250 QUILOS DE SACOS DE CIMENTO PORTLAND. O MARIDO PASSOU ALGUM DINHEIRO AO MOTORISTA, NOTAS AMARFANHADAS, E O CAMINHÃO PARTIU IMEDIATAMENTE. O caminhoneiro havia faturado com material de construção destinado a alguma obra. Passamos meia hora transferindo o cimento a um canto escuro de um quarto dos fundos, recobrindo os sacos com uma lona, porque as letras da embalagem eram impressas em azul, o que configura propriedade do Estado. Os sacos com letras verdes são destinados à construção de escolas. Os sacos reservados ao uso dos cidadãos comuns vêm impressos em vermelho, e custam US$ 6 a unidade, nas lojas do Estado. Ao contrário da maioria dos funcionários cubanos, Leal de fato fez diferença na vida dos cidadãos. Reconstruiu os velhos hotéis; meus amigos roubaram 250 quilos de cimento para construir seu novo bangalô para turistas. Restaurou um museu, e meus amigos roubaram telhas de zinco para os telhados. Enviou caminhões carregados de madeira ao bairro, e metade da carga desapareceu. Tudo é propriedade do Estado. As pessoas se apoderam de tudo. Um sistema de racionamento operando em modo reverso. AJUDAR NO ROUBO DO CIMENTO FOI MEU PRIMEIRO GRANDE SUCESSO. POR MEIA HORA DE TRABALHO, RECEBI UM PRATO IMENSO DE ARROZ COM FEIJÃO VERMELHO, ACOMPANHADO POR UMA BANANA E UMA PORÇÃO DE PICADILLO --PELO MENOS 800 CALORIAS. SEGUNDA SEMANA A segunda semana foi mais fácil. As duas pequenas prateleiras do apartamento estavam bem abastecidas de arroz e feijão, algumas batatas doces compradas por 1,70 peso o quilo, e minha garrafa de uísque contrabandeado, ainda pela metade. Eu tinha nove ovos, depois oito, e depois sete, ainda que a geladeira fora isso estivesse vazia. Deixei de lado luxos como os sanduíches (ou sanduíche --comprei só um, e a despesa ainda me causava pesadelos). NO DÉCIMO DIA, constatei que me restavam 100 pesos. Como no caso dos ovos, eu era capaz de imaginar uma lenta e cuidadosa redução ao longo dos próximos 20 dias, mas tanto meu orçamento quanto minha dieta podiam ser arruinados caso eu tropeçasse e deixasse uma gema cair no chão. Tudo dependia de quanto o arroz duraria. Já que só me restavam cinco pesos por dia para gastar, eu não poderia mais fazer compras grandes durante a minha estadia. Aprendi a controlar o apetite e a passar sem me deter pelas filas de cubanos que adquirem pequenas bolas de farinha frita a um peso. MEU ÚNICO LUXO FOI UMA BARRA DE MANTEIGA DE AMENDOIM ENDURECIDA, PRODUZIDA ARTESANALMENTE POR AGRICULTORES, QUE COMPREI POR CINCO PESOS EM UM AGRO. Com cuidado, essa barra de tamanho equivalente a seis colherinhas de amendoim moído rusticamente e pesadamente açucarado podia durar até dois dias. É normal ver os campesinos mais pobres mascando essas barras, que eles embrulham cuidadosamente e guardam depois de cada mordida. TRABALHO Outra coisa que eu tinha em comum com a maioria dos cubanos é que absolutamente não trabalhei durante meus 30 dias. O que significa que trabalhei muito e com grande frequência em meus projetos pessoais. Carreguei cimento e removi cascalho por dinheiro, e escrevi bastante, mas não se tratava de trabalho para o Estado, o tipo de trabalho computado nas contas da Cuba oficial, onde mais de 90% das pessoas são funcionários do Estado. Por que procurar emprego? Ninguém leva seu trabalho a sério, e a piada mais velha de Havana continua a ser a melhor: "Eles fingem que nos pagam, nós fingimos que trabalhamos". Os cubanos que ignoram convocações oficiais ao trabalho podem ser acusados de serem "elementos perigosos", um delito vago e passível de pena de até quatro anos de prisão. Ser um elemento perigoso é um "pré-crime", disse Elizardo Sánchez --como se a polícia tentasse cortar pela raiz as atitudes negativas antes que a pessoa tenha a oportunidade de cometer um crime real. Há campanhas regulares para deter os jovens que tentem evitar o trabalho estatal e o serviço militar, e este ano elas se provaram especialmente vigorosas, um sinal de nervosismo. "NÃO É FÁCIL SE ESCONDER DO GOVERNO", disse Sánchez. "OS MENINOS PRECISAM SE REGISTRAR PARA FUTURO SERVIÇO MILITAR AOS 15 ANOS DE IDADE. ÀS VEZES TENTAM MUDAR DE ENDEREÇO, MAS NÃO FUNCIONA. PARA UM JOVEM, É DIFÍCIL PERMANECER ESCONDIDO. CUBA É UMA SOCIEDADE DE ARQUIVOS. DA PRIMEIRA SÉRIE EM DIANTE, A POLÍCIA PARA CRIANÇAS NAS RUAS E LHES SOLICITA DOCUMENTOS DE IDENTIDADE. PODEM FAZER CONTATO PELO RÁDIO E PEGAR A FICHA COMPLETA". CARAMELO Com isso, eu tinha tempo de sobra. Naquela noite, ouvi música ao longe e encontrei uma série de palcos montados ao longo da rua 23, e assisti a um bom show de rock sob a luz da lua. Sentei-me no pedestal de alguma obscuridade heróica --uma mãe estendo os braços para entregar o filho à batalha. Depois de algum tempo, uma menininha de sete ou oito anos se aproximou e sentou perto de mim. "Caramelo?", disse. (Doce?) "Não tenho". "Nenhum?" "Nada". "Mas nenhum, mesmo?" "Não". Então vieram as perguntas usuais: de onde você vem, onde mora, por que está por aqui. E de novo: "Não tem dinheiro nenhum?" "Não tenho". "Mas os estrangeiros sempre têm muito dinheiro". "Sim, tenho dinheiro no meu pais. Aqui, vivo como se fosse cubano". "ME DÁ UM PESO?" Não posso. A verdade, pequena, é que estou no meio de um jogo. Estou fingindo ser pobre. Estou vivendo como seus pais, por algum tempo. Não como há nove horas. Nos 11 últimos dias, comi 12 mil calorias a menos do que minha dieta normal disporia. Meus dentes doem muito. Ou, traduzido para o espanhol: "Não". MIL CALORIAS Por fim, voltei para casa, onde uma celebração muito desejada me aguardava. Era sexta-feira, a noite da semana em que eu comeria carne. Ainda que o dia até aquele momento tivesse sido um de meus piores --apenas mil calorias até as 21h, e longas caminhadas-, estava determinado a compensar tudo aquilo com um banquete. Preparei arroz, e cozinhei uma batata doce na panela de pressão --que os cubanos apelidam de "AQUELA QUE FIDEL NOS DEU", porque foram as panelas distribuídas como parte de um esquema de economia de energia. Também tomei uma preciosa dose de uísque com gelo (250 calorias), tudo isso acompanhado por arroz e feijão que sobraram do dia anterior. Por necessidade, servi apenas porções pequenas. Do refrigerador, tirei minha proteína: um dos quatro filés de frango empanados a que tinha direito para o mês. Acendi o fogão com cuidado, e fritei o filé até que sua crosta ficasse escura, ainda que ao servi-lo o interior estivesse frio e úmido. Não era carne de frango. Não era nem mesmo a "mistura de frango" que a embalagem dizia ser. Os principais ingredientes mencionados eram pasta de soja e trigo. Uma inspeção mais cuidadosa revelou que o teor de carne de frango era zero. Eu estava comendo uma esponja empanada, com apenas 180 calorias. Ah, meu reino por um McNugget. Por fim, cruzei a barreira das duas mil calorias pela primeira vez em 10 dias --por pouco. Descontando os muitos quilômetros de caminhadas e alguns minutos de dança, retornei à familiar referência das 1,7 mil calorias. Mas pelo menos estava de barriga cheia quando fui dormir. Ou era o que eu imaginava. Depois de duas horas de sono, acordei com insônia, a companheira da fome. Fiquei na cama da uma da manhã até o alvorecer, cinco horas de briga contra mosquitos e de leitura de Victor Hugo e Alexandre Dumas. Ainda assim, não é possível comparar minha situação a uma fome real. Como aponta Hugo: "Por trás da arte de viver com muito pouco, está a arte de viver com nada". Mergulhei nos milhares de páginas da França do século 19, em dois escritores que descrevem revoluções, marchas forçadas e fome real. "Quando a pessoa não comeu", escreve Hugo, "a sensação é muito estranha... Ela rumina aquela coisa inexprimível, a amargura. Uma coisa horrível, QUE ENVOLVE DIAS SEM PÃO E NOITES SEM SONO". E assim chegou a aurora, minha 12ª. TELEFONEMA Repentinamente, sorte e felicidade. Na noite seguinte, eu estava sentado à porta do meu edifício, observando a rua, quando meu vizinho se aproximou vindo do beco, trazendo um telefone. Um telefonema. Para mim. Era a amiga de um amigo, em visita a Cuba com seu namorado. Os dois eram claramente norte-americanos, do tipo "que bom que nós existimos", e eu imediatamente farejei a possibilidade de uma refeição grátis. O casal havia chegado a Havana e, porque não conheciam a cidade e nem falavam espanhol, me convidaram para jantar. Saímos a passeio pelas ruas de Vedado, e eu evitei cuidadosamente pedir comida, tentando parecer estóico. Jantamos em um restaurante para turistas, e pela primeira vez desde minha chegada comi carne de porco. Na tarde seguinte, voltamos a nos encontrar. Eu os levei a uma cerimônia de iniciação na Santería, uma hora de tambores e calor sufocante em um pequeno apartamento, durante a qual pelo menos três pessoas foram possuídas por espíritos. Depois, recebi novo convite para jantar em um restaurante elegante. Mais carne de porco! Os cubanos preparam lechón, um inocente leitãozinho, marinado em um molho de alho e laranjas azedas, e cozinham o prato por muitas horas; a carne fica macia a ponto de poder ser comida com a colher. Para acompanhar a reluzente proteína e gordura, serviram-nos arroz com feijão, exatamente aquilo que eu comia duas vezes por dia em meu apartamento. A porção servida equivalia a quatro refeições para mim, expliquei. "Desculpe", disse o namorado enquanto se servia, "mas vou comer sua quinta-feira". Como as centenas de cubanos a quem servi de anfitrião ao longo dos anos, tive de trabalhar pela minha comida. Falei sobre a história dos cultos afrocubanos. Sobre a história de edifícios que nunca visto. Sobre a ilha vista pelos olhos de Capone, Lansky, Churchill e Hemingway. Fiz piadas sobre o socialismo. Discorri sobre a arte do racionamento. O segredo do daiquiri. Nas duas noites, comi carne de porco, acompanhada por arroz e feijão e um par de coquetéis. A despeito da carne, não registrei grande avanço nas calorias consumidas --apenas 2,1 mil ao dia, ante minhas 1,7 mil usuais. Mas as refeições ajudaram meu bem estar psicológico. Eu havia conseguido uma folga, como que um feriado, depois da ansiedade causada pela redução de meu estoque de alimentos básicos. LIXO Na manhã seguinte, encontrei uma mulher vasculhando meu lixo. Ela estava em busca de garrafas de vidro ou qualquer outra coisa de valor. Dei-lhe minhas calças de zíper enguiçado. Ela tinha 84 anos, a idade de minha mãe, e vivia com uma aposentadoria de 212 pesos ao mês, ou pouco mais de US$ 8. Vasculhava latas de lixo em busca de produtos aproveitáveis --para fúria de minha faxineira, que considerava ter direito ao conteúdo das latas- e trabalhava como colera, ou profissional de espera em filas, para cinco famílias moradoras do quarteirão. Ela levava suas cadernetas de racionamento à bodega, retirava e entregava os mantimentos a elas, e por esse trabalho recebia cerca de 133 pesos. Estava usando uma bombinha de asma que custava 20 pesos, ou cerca de 75 centavos de dólar, mas apenas a primeira dose era comprada a esse preço; se a pessoa precisasse de mais de uma ao mês, teria de recorrer ao mercado negro, pagando alguns dólares por unidade. PARA AGRADECER PELAS MINHAS CALÇAS, ELA INFORMOU QUE A PADARIA "LIVRE" TINHA ESTOQUE. ESTAVA FALANDO DA PADARIA NÃO RACIONADA, ONDE QUALQUER PESSOA ESTÁ AUTORIZADA A COMPRAR PÃO. O PREÇO É QUATRO VEZES MAIS ALTO QUE O DAS PADARIAS RACIONADAS, MAS HÁ MUITO MAIS PÃO. Apanhei uma sacola plástica e caminhei oito quarteirões (passando por três padarias racionadas que estavam fechadas) para comprar um pão inteiro por 10 pesos. No meu caminho de volta, uma mulher que ia na direção oposta perguntou: "A padaria tem pão?", e acelerou o passo, diante da resposta. Depois, quando passei por dois homens que jogavam xadrez sob uma figueira, um deles fez a mesma pergunta. "SIM, HÁ PÃO", respondi. Os dois guardaram as peças, enrolaram o tabuleiro e se foram na direção da padaria. Meu café da manhã havia sido uma pequena e dura banana da terra, comprada de um homem em um beco. Com café e açúcar, ela representava menos de 200 calorias. O almoço consistiu de um ovo acompanhado por duas fatias do pão que eu tinha comprado, ou seja, mais 380 calorias. Eu tinha US$ 3 na carteira, e mais 17 dias para sobreviver. Um erro catastrófico. Andei a tarde toda, e o teor de açúcar no meu sangue estava baixo. QUANDO PASSEI POR UM BECO CURTO NO QUAL HAVIA UM CARTAZ COM A PALAVRA "PIZZA", PAREI E PEDI UMA. A PIZZA BÁSICA --UM DISCO DE 15 CENTÍMETROS DE MASSA TENUAMENTE RECOBERTO DE KETCHUP E UM POUQUINHO DE QUEIJO- CUSTA 10 PESOS, MAS CEDI A UM IMPULSO E PEDI UMA ESPECIAL, COM CHORIZO. ASSIM, MEU LANCHE CUSTARIA 15 PESOS. NO MEU APARTAMENTO, COLOQUEI A PIZZA NA MESA E A CONTEMPLEI, HORRORIZADO. OS 15 PESOS EQUIVALIAM A HORRÍVEIS US$ 0,60, E ESTOURARIAM MEU ORÇAMENTO. Pelo mesmo montante, eu poderia ter comprado quilos de arroz. Contemplando a minúscula pizza, menor que uma fatia de pizza norte-americana, comecei a tremer e tive de me sentar. De repente, comecei a chorar. Por bons 10 minutos, solucei e me amaldiçoei. Imbecil! Tolo! Idiota! TENSÃO Eu havia gasto um quinto do dinheiro que me restava por impulso, e agora só tinha 64 pesos para viver pelos próximos 17 dias. O que me aconteceria? O que eu comeria quando meus feijões, cujo estoque já estava baixo, acabassem? E se eu cometesse outro erro? E se fosse roubado? Como chegaria ao aeroporto no último dia se não tivesse nem mesmo alguns centavos para pagar o ônibus? Chorar libera não só tensão e medo como endorfinas. A pizza e eu esfriamos juntos. Comi com cuidado, usando garfo e faca, e bebendo água gelada. A "refeição" durou menos de dois minutos. Foi o ponto mais baixo do meu mês. Algum tempo depois, bateram à minha porta. A filha de um dos vizinhos estava do lado de fora. "Patri!", ela gritou. "Patri!" Abri a porta e ela me entregou uma caixa de sapatos. Era pesada, e estava envolta em fita adesiva. Um visitante havia passado por lá --OUTRO NORTE-AMERICANO QUE ESTAVA EM VISITA A CUBA-, e quando a abri encontrei um bilhete da minha mulher e do meu filho pequeno, e três dúzias de biscoitos de chá feitos em casa. Comi 10 deles. Da emboscada à fuga. Das lágrimas à paz. Da danação à alegria. Racionei o restante dos biscoitos: cinco ao dia até que o estoque se reduzisse, e depois dois ao dia; por fim, desmontei a caixa com uma faca e comi as migalhas que encontrei nos cantos. ESPELHO Uma vez por dia, eu cedia à vaidade e me olhava no espelho sem camisa, vendo um homem que não contemplava há 15 anos. Eu havia perdido primeiro dois, depois três, por fim quatro quilos. Mas estômago e mente se ajustaram com facilidade assustadora. Minha primeira semana havia sido dolorosa e acompanhada por uma fome mortal. A segunda, dolorosa e apenas moderadamente faminta. Agora, na terceira, ainda que estivesse comendo menos que nunca, me sentia tranquilo, tanto física quanto mentalmente. O dia havia sido o pior da viagem até aquele momento, com apenas 1,2 mil calorias consumidas, o equivalente ao que os prisioneiros norte-americanos recebiam dos japoneses durante a Segunda Guerra Mundial. Voltei à casa dos meus amigos ladrões de cimento e, depois de uma longa espera, a mulher me cozinhou um jantar generoso, rolando de rir da minha "EXPERIÊNCIA". Ela fritou (em óleo roubado de uma escola) uma porção de carne de frango moída (comprada de um amigo que a roubara), e serviu com arroz "FEIO" da ração e uma pequena beterraba. Depois da refeição, ela até me fez gemada, mas em porção cubana --um golinho, em uma xícara pequena de café. Também comi algumas colheradas de papaia (um peso a porção, em um mercado barato que ela recomendou), cozido com xarope de açúcar. "É impossível", ela disse, sobre minha tentativa de ser oficialmente cubano. Para sobreviver, todo mundo precisa de "algo extra", alguma renda excluída do sistema. O marido dela alugava um quarto para um turista sexual norueguês. A vizinha vendia almoços a trabalhadores de uma empresa cujo refeitório fora fechado recentemente. A mãe dela caminhava pelas ruas com uma garrafa térmica e xícara, vendendo cafezinhos. Uma vizinha na rua ao lado roubava óleo de cozinha e revendia por 20 pesos a garrafa de meio litro. Outra vizinha roubava carne de frango e a vendia por 33 pesos o quilo. ("BOA QUALIDADE, PREÇO MUITO BOM, VOCÊ DEVIA COMPRAR", ELA ACONSELHOU.) A refeição que ela serviu foi a única que comi naquela dia, e as calorias consumidas foram compensadas por uma espantosa caminhada não através de Havana mas em torno da cidade, um circuito extenso pelas ruas carcomidas, passando por grandes hotéis, casas encardidas, pessoas dormindo sem teto e sentadas em caixotes, sem descanso, as horas da manhã, tarde e noitinha girando, pelas largas avenidas e becos estreitos, passando por Plaza, Vedado, Centro, Velha Havana e chegando a Cerro antes de voltar a Plaza de novo, três, seis, 10, 13 quilômetros, passando pela estação rodoviária, estádio de futebol, os sapatos furados de tanto andar, até que voltei para dormir. Meus pés estavam doloridos. Mas meu estômago não tinha queixas. Eu costumava dizer que, em Cuba, 10% de tudo era roubado, para revenda ou reaproveitamento. Agora creio que a proporção real seja de 50%. O crime é o sistema. Na calçada diante da minha loja de produtos racionados, um dia, vi um adolescente com cabelo cortado em estilo punk, sentado em seu reluzente Mitsubishi Lancer, de motor ligado, e brincando com o que achei ser um iPhone. "Não é um iPhone", ele me corrigiu. "É um iPod Touch". O aparelho é vendido por US$ 200, ou 5,3 mil pesos. Algumas pessoas têm dinheiro, mesmo aqui. A única certeza é a de que não ganham esse dinheiro de nenhuma maneira legítima. Caminhei até o amplo hotel Riviera, cujo salão de jogos de azar foi fechado devido à nacionalização apenas um ano depois de inaugurado. (O proprietário, Meyer Lanski, disse, famosamente, que "tive azar nos dados".) PESEI-ME NA BALANÇA DA ACADEMIA DE GINÁSTICA: 90 QUILOS. EM 18 DIAS, EU HAVIA PERDIDO QUASE CINCO QUILOS, UM RITMO DE REDUÇÃO DE PESO QUE TERIA RESULTADO EM HOSPITALIZAÇÃO NOS ESTADOS UNIDOS. A caminho de casa, uma mulher perguntou onde passava o ônibus P2. Atrapalhei-me para responder. "Ah, achei que você fosse cubano", ela disse. Mude de peso, mude de nacionalidade. Ri de seu engano e continuei andando, mas não demorou um minuto para que ela me seguisse. "Ei, me leve para almoçar", ela disse. "Onde você quiser". Fiz que não com a cabeça. "Almoço", ela disse, enquanto eu me afastava. "Jantar. Como preferir". Em casa, abri a geladeira e contei os cinco ovos que me restavam. Como a mulher em busca do P2, eu havia me tornado direto. Caminhei três quilômetros até Cerro, um bairro perigoso. Passei por um beco no qual restos enferrujados de caminhões repousavam, por um estádio esportivo derruído, por um parque de vegetação descuidada, por um bosque, e cheguei à porta de entrada do Ministério do Interior. É o famoso edifício com uma estátua gigante de Che Guevara. Dois soldados de boinas vermelhas estavam de guarda. O edifício do Minint costuma ser fotografado o tempo todo, devido à escultura de Che que o tornou famoso, mas ninguém quer entrar. Ignorei os guardas e continuei caminhando pelo asfalto rachado da imensa Plaza da Revolución. Do lado oposto, caminhando com cuidado, passei pela entrada de um edifício baixo mas colossal, posicionado ao final de uma larga esplanada. Era o Conselho de Estado, o núcleo do sistema revolucionário; nele, Raúl Castro comanda o trabalho dos principais funcionários cubanos. Soldados das forças especiais armados de pistolas e cassetetes protegem a entrada; o governo se sente seguro a ponto de ter apenas um par de pistolas me separando de Raúl. Caminhando a esmo, e ocasionalmente em círculos, passei por Cerro e outros bairros até encontrar a casa de Oswaldo Payá, um dos mais importantes dissidentes de Cuba. Falamos de política, cultura, neoliberalismo e direitos humanos, mas o que me chamou a atenção foi sua situação econômica pessoal. "MEU SALÁRIO É DE 495 PESOS POR MÊS", DISSE. "ISSO EQUIVALE A CERCA DE 10 REFEIÇÕES PARA QUATRO OU CINCO PESSOAS. OS SALÁRIOS NÃO COBREM UM QUINTO DE NOSSAS NECESSIDADES ALIMENTÍCIAS. UM SANDUÍCHE DE 10 PESOS E UM REFRIGERANTE DE UM PESO CONSOMEM METADE DO MEU SALÁRIO DIÁRIO. SE SOMARMOS A DESPESA DE IR AO TRABALHO E VOLTAR PARA CASA, E OS MEUS TRÊS FILHOS QUE ESTÃO NA ESCOLA, PRECISAMOS DE 10 A 12 PESOS POR DIA PARA TRANSPORTE --OU SEJA, 50% A 60% DA RENDA FAMILIAR TOTAL". Ele sobrevive graças a um irmão que vive na Espanha e envia dinheiro. "O paradoxo é que os trabalhadores são as pessoas mais pobres de Cuba. Vivemos todos pior que o sujeito que vende cachorro quente no posto de gasolina da esquina" (uma empresa autorizada a vender em moeda forte). A maioria das pessoas não tem CUC, e voltam para casa famintas a cada noite. "Não digo que tudo em Cuba seja ruim, ou terrível. Temos esquemas de distribuição para alimentar os pobres, para conceder benefícios. Mas essa é outra forma de dominação, mantendo as pessoas pobres para sempre. Se minhas mãos estivessem livres, eu abriria um negócio e me sustentaria sozinho". Perguntei-lhe onde alguém poderia conseguir dinheiro para um iPod Touch ou qualquer das outras engenhocas, produtos de luxo, carros moderno, aparelhos de som e roupas elegantes que são cada vez mais comuns em Cuba. "Viver de salário equivale a ser pobre", disse. "TODOS PRECISAM ROUBAR O SISTEMA PARA SOBREVIVER. É A CORRUPÇÃO TOLERADA DA SOBREVIVÊNCIA". Uma minúscula classe média emergiu: "Empresários, quase todos antigos funcionários do governo, pessoas que operam restaurantes. São todos ligados ao regime. A maioria ex-militares ou funcionários do Ministério do Exterior, e assim por diante. Pessoas bem conectadas. Estão dentro do sistema. São intocáveis". E existe um terceiro grupo, incrivelmente pequeno e "indescritivelmente" próspero, dentro da liderança, "com casas grandes, viagens ao exterior, tudo. O povo cubano sabe que esse grupo existe, mas ninguém jamais os vê, não há como". Ao longo de uma hora de conversa, sua mulher, Ofelia, empregada doméstica e também ativista dos direitos humanos, me serviu um copo de suco de abacaxi. Quando o assunto estava se esgotando, Oswaldo insistiu que eu voltasse para uma refeição e um mojito, "QUANDO QUISER". Não saí da cadeira. A conversa sobre futuras refeições me deixou com água na boca. Ofelia percebeu, e logo ouvi o ruído de fritura na cozinha. Comemos sopa de tomate, arroz e lentilhas amarelas. Ela serviu uma porção de proteína, uma mistura cinzenta que pensei ser picadillo do governo porque tinha gosto de soja e restos de alguma coisa que um dia tivesse sido um animal. Mas Ofelia tirou a embalagem da cesta de lixo. Era carne de peru "separada mecanicamente" produzida pela Cargill, dos Estados Unidos, parte das centenas de milhões de dólares em produtos agrícolas vendidos a Cuba a cada ano sob uma cláusula de isenção do embargo. Era quase intragável, mesmo com a fome que eu sentia, mas Ofelia tinha um sorriso largo nos lábios. "Muito melhor que o peru que comprávamos antes", disse. Quando eu estava saindo, Oswaldo tentou me dar 10 pesos. "Qualquer cubano faria isso por você", disse. Ele me aconselhou a gastar o dinheiro em comida, mas recusei, devolvendo as notas. Não podia aceitar dinheiro de uma fonte, ainda que meus escrúpulos não se estendessem a recusar uma refeição. Ele insistiu. No final, para evitar a caminhada de volta à minha casa, aceitei uma moeda de um peso para o ônibus. Oswaldo caminhou comigo pelas ruas de seu bairro perigoso, repletas de adolescentes que nos encaravam, e me levou ao ponto de ônibus. "USE CALÇAS COMPRIDAS", FOI SEU CONSELHO FINAL. SÓ TURISTAS CIRCULAM DE SHORTS. Eu vinha há mais de uma semana me esquivando às atenções de uma jovem que caminhava pelas ruas próximas de meu apartamento. Era um exemplo clássico da economia cubana em ação: calças justíssimas, correntes douradas, sombra azul nos olhos, sandálias com salto plataforma e unhas postiças de acrílico pintadas nas cores da bandeira cubana. "Psst", ela dizia ao passar, chamando minha atenção para esses atributos. Eu muitas vezes costumava me sentar na escadaria do meu prédio, a fim de aliviar a sensação de estar aprisionado no pequeno apartamento. Ela me olhava pelo portão de ferro, ao passar, e me chamava. Psst. Eu resistia ao apelo. Mas a jovem, como muitas prostitutas cubanas com quem conversei, era uma mulher charmosa e inteligente lutando para sobreviver. Conversamos uma vez, e voltamos a fazê-lo dias mais tarde. Nossa terceira conversa foi longa. Ela tentava o tempo todo ser convidada a entrar no meu apartamento --eu tinha fogo para seu cigarro? Um cafezinho? Uma cerveja ou refrigerante?- e eu nem cedia e nem recusava, porque as histórias dela me divertiam. Em dado momento, o som de um celular surgiu de seu decote. Ela atendeu, e travou uma conversação tendenciosa, em inglês. Quando desligou, ela disse: "Ele quer comer meu rabo". Cogerme em el culo. Os cubanos, especialmente as prostitutas, não fazem rodeios quanto a sexo. Ou raça. "Os negros sempre querem sexo anal", ela continuou. "Não gosto de negros, mesmo que me considere negra, e minha irmã é negra, mas acho que os negros cheiram mal. O sujeito tem muito dinheiro. É um homem importante nas ilhas Cayman, e rico de verdade. Ele me ofereceu US$ 150, e eu recusei. Agora disse que quer me pagar US$ 300 só por um jantar". "Duvido muito", eu disse. "Pois é. Sempre digo a ele para ligar para minha prima. Ela adora negros". Todas as nossas conversas tanto começavam quanto se encerravam com uma proposta. Porque, ao longo de uma semana, eu havia recusado repetidamente os seus convites, ela disse: "EU ACHEI QUE VOCÊ FOSSE PATO". O quê? "Você sabe, maricón. Um gay. Homossexual". Ela é enfermeira, tem 24 anos, vive em Holguín. Para conseguir mais tempo de férias, trabalha turnos de 12 horas, e depois, a cada quatro ou seis meses, vai a Havana para um longo intervalo "no qual me dedico a isso", disse. Em um raro momento de eufemismo, se definiu como dama de acompañamiento. "A maioria das meninas tem cafetões, mas eu não; preciso me defender sozinha". Além do celular, seu decote oculta uma pequena faca serrilhada, cuja lâmina ela estendeu e exibiu. "Você sabe por que fazemos isso", disse, "não é? É a única maneira de sobreviver. Tenho uma filha e a amo muito. É uma menina preciosa. Sinto muito sua falta. É por ela que faço isso. Que tal me dar US$ 100 e a gente sobe agora?" (Ela mais tarde me ofereceria o "preço cubano" de US$ 50.) Eu disse a ela que não tinha dinheiro. Expliquei o que estava fazendo. A ração. O salário. Os cinco quilos que eu tinha perdido. "Não tenho nem um peso", disse. Ela pediu uma caneta, anotou seu telefone e me entregou o papel. Depois, tirou de um dos bolsos minúsculos de sua calça justa uma moeda de um peso, e me entregou. "Para você me telefonar", disse. FOI MAIS UM DIA TERRÍVEL NO QUE TANGE À COMIDA, MEU PIOR ATÉ AQUELE MOMENTO. DO ALVORECER À MEIA-NOITE, COMI ARROZ, FEIJÃO E AÇÚCAR EM VALOR NUTRITIVO DE POUCO MAIS DE MIL CALORIAS. Acordei às três da manhã seguinte e terminei o arroz. Só me restava um pouco de feijão, duas batatas doces, algumas bananas da terra mirradas, três ovos e um quarto de repolho. Faltavam nove dias. Fui à loja de produtos racionados, procurei Jesús e comprei café, meio quilo de arroz e um pouco de pão --tudo a preços cubanos, um total de 14 pesos, ou cerca de US$ 0,60. Com isso meu dinheiro acabou. Mas essas sobras de comida, a generosidade de diversos cubanos e meu estômago contraído para o tamanho de uma noz garantiram que fosse o bastante. Eu sabia que cumpriria meu plano até o fim. No dia seguinte, fui a pé até a casa de Elizardo Sánchez, o ativista dos direitos humanos. Setenta minutos de caminhada para ir e 70 para voltar. "Tudo está bem, agora", eu lhe disse, delirando com a falta de açúcar no sangue. "ATÉ PROSTITUTAS ESTÃO ME DANDO DINHEIRO". Passei uma hora em sua casa. Ele me ofereceu um copo de água. Por fim chegou o grande dia da fuga. Na metade de fevereiro, caminhei pela última vez até o Riviera e me pesei na academia. Estava mais de cinco quilos abaixo do peso que tinha ao chegar. Mais de cinco quilos perdidos em 30 dias. Eu tinha consumido 40 mil calorias a menos do que estava acostumado. A esse ritmo, eu estaria magro como um cubano por volta do segundo trimestre; e morto antes do final do ano. Concluí a estadia com algumas refeições minúsculas --acabei com o arroz feio, comi a última batata doce e um quarto de repolho. No dia anterior à partida, recorri à reserva para emergências e comi os palitos de gergelim do avião (60 calorias), acompanhados pela lata de suco de frutas contrabandeada das Bahamas (180). O sabor do líquido vermelho foi um choque: amargo por conta do ácido ascórbico e repleto de açúcar, a fim de imitar o sabor de um suco real. Foi como beber plástico. FIM Meus gastos totais com comida foram de US$ 15,08 ao longo do mês. Ao final, eu tinha lido nove livros, dois dos quais com mais de mil páginas, e escrito boa parte deste artigo. Vivi com o salário de um intelectual cubano e, de fato, sempre escrevo melhor, ou ao menos mais rápido, se estou sem grana. Minha última manhã: sem desjejum, para complementar o jantar que não tive na noite anterior. Usei a moeda que ganhei de uma prostituta para apanhar um ônibus até perto do aeroporto. Tive de caminhar os 45 minutos finais até o terminal; quase desmaiei no caminho. Houve um momento tragicômico, no qual homens uniformizados me tiraram da fila do detector de metais porque um agente da imigração achou que eu tinha excedido os 30 dias de permanência do meu visto. Foi preciso três pessoas, contando repetidamente nos dedos, para provar que aquele era o 30º dia. Jantei e almocei nas Bahamas e engordei quase dois quilos. De volta aos EUA, ganhei mais três quilos antes que o mês acabasse. Estava de volta à minha nacionalidade --e ao meu peso.

PERNAMBUCO VAI GANHAR UM PARTIDO POLÍTICO DE VERGONHA...


EM PERNAMBUCO, REDE SUSTENTABILIDADE TENTA COLHER 70 MIL ASSINATURAS

Após o lançamento do REDE SUSTENTABILIDADE, os articuladores do novo partido em Pernambuco já se movimentam. O secretário estadual de Meio Ambiente, Sérgio Xavier, e o ex-deputado estadual Roberto Leandro, que deixaram o PV para integrar o Rede, começam hoje a busca por um escritório político onde pretendem instalar um "QUARTEL GENERAL" para centralizar as ações de coleta de assinaturas de apoio à criação da sigla. O OBJETIVO É ARRECADAR EM PERNAMBUCO APROXIMADAMENTE 70 MIL ASSINATURAS NAS FICHAS DE APOIO À FORMALIZAÇÃO DO PARTIDO. Isso porque, apesar de no encontro, em Brasília, ter sido homologado um estatuto e um programa, o REDE SUSTENTABILIDADE ainda não existe perante a Justiça Eleitoral. Para que isso ocorra, é necessário que 491 mil eleitores, ou 0,5% do eleitorado brasileiro, assinem uma ficha de apoio que encontra-se disponível na internet. Essas assinaturas devem ser coletadas em ao menos nove Estados. "CLARO QUE VAMOS TRABALHAR EM TODO O PAÍS. QUEREMOS RECOLHER MAIS QUE 500 MIL ASSINATURAS, PORQUE SEMPRE TEM UMA OU OUTRA QUE É INVÁLIDA POR PROBLEMAS NO NÚMERO DO TÍTULO DE ALGUNS APOIADORES", explicou Roberto Leandro. Uma delegação de oito pernambucanos esteve em Brasília para o ato de lançamento da legenda. O ex-deputado esclareceu que um cronograma será montado para que Marina Silva visite Pernambuco em busca de apoiadores ao seu novo projeto político. "MARINA TEVE UMA VOTAÇÃO EXPRESSIVA EM NOSSO ESTADO E QUALQUER PROGRAMAÇÃO ESTRUTURADA PELA CÚPULA DO REDE NÃO PODE DEIXAR PERNAMBUCO DE FORA", destacou. Leandro fez questão de ressaltar que será amplamente divulgada a proposta do novo partido para o Brasil, incluindo preceitos éticos. "NÃO VAMOS TRABALHAR DE FORMA FISIOLÓGICA. ESSE PARTIDO NÃO TERÁ DONO NEM COMANDANTE", salientou (Fonte: Jornal do Comércio).