A MÚSICA POPULAR BRASILEIRA TEM EM BELCHIOR UM DE SEUS MOMENTOS MAIS
DENSOS. O COMPOSITOR CEARENSE IMPÔS AO CANCIONEIRO BRASILEIRO UMA TEMÁTICA
COMPLEXA, OUSADA E DE FORTE APELO POPULAR. AS LETRAS DE BELCHIOR ULTRAPASSAM A FORÇA
DA PRÓPRIA CANÇÃO E INVADEM O REGIME DAS CITAÇÕES SOCIAIS DE MANEIRA
FRAGMENTÁRIA E DESTACADA.
Gustavo Conde
Hoje, 30 de abril, um ano sem
Belchior... Ele faz ou fez uso, em primeiro plano, da história. Suas canções
são fortemente contextualizadas no tempo e no espaço. O Brasil dos anos 70 está
lá como em poucos outros lugares: as migrações internas, o preconceito, a
utopia, a opressão, a cultura como fonte de resistência, a plurivocalidade da
canção popular (que se desdobra em tema), a cena familiar e passional típicas
de um regime de exceção e exclusão, a amizade revolucionária, a sutileza
avassaladora das metáforas que driblam a censura do próprio ‘eu’, enfim, uma
organização temática que vai produzir um significado muito peculiar de unidade
formal, porque, dentro da sua multiplicidade, vai servir sempre a um sentido
fundador e onipresente: o sujeito que não se enquadra nas convenções sociais
mas que ao mesmo tempo as respeita e as investe de delicadeza e humanidade.
À sua maneira,
Belchior é um fundador de discursividade. Ele planeja sua peça cancional dentro
de um rigor estético muito evidente, mas ao interpretar a si mesmo com sua voz
única, ele intensifica ainda mais o sentido geral de seu enunciado.
Belchior é até
mais que um intérprete de si mesmo no sentido estrito. Sua própria vida foi
tomada pela força de sua obra. Como suas letras já relatavam uma autobiografia
fragmentária que se confundia com sua própria vida de compositor e cantor
celebrado na cena musical, o desdobramento de ambas, vida e obra, tomou o
destino de assalto.
Belchior que amou
viajar pelo Brasil e fez disso um tema recorrente em suas canções, acabou ele
mesmo confinado em um país vizinho – o Uruguai – para viver seus momentos
finais como indivíduo de carne e osso. Projetos interrompidos, legado mal
resolvido, legiões de fãs órfãs antes mesmo de sua despedida, tudo isso poderia
muito bem compor um desdobramento de sua temática cancional. Aliás, de uma
certa maneira, tudo isso está lá, edificado em versos premonitórios e de raríssima
beleza e força.
O
jornal O Povo escreveu o seguinte: À comoção inicial, porém, seguiu-se o
esquecimento habitual em que a trajetória do artista havia deliberadamente
mergulhado nos últimos anos, depois de sucessivos episódios novelescos que o
atiraram num torvelinho familiar e na precariedade financeira. Sua vida era tão
imensa quanto sua obra, afinal. Disso o desaparecimento súbito era prova.
A
palavra é justa para falar de Belchior: ESQUECIMENTO.
Outra
também muito cara: SAUDADE.
E uma
terceira: FUGA.
Juntas,
compõem esse rol de sentimentos em torno dos quais as músicas e os passos do
cantor e compositor orbitavam, ajudando a entender por qual geografia amorosa o
cearense se deslocava.
Mas
outros temas dominaram a sua música.
A voz
torta e cortante frequentemente aludia a uma inadequação migrante e à busca por
um lugar no mundo, agonias presentes no seu cancioneiro. Falava ainda dos não
raros aperreios com os de casa e ao desejo de alucinação, este não apenas
confeito lírico. Em Belchior, alucinar-se era uma filosofia e uma resistência
exercidas na esfera do indivíduo.
De obra
essencialmente poética e política, o rapaz latino-americano tinha POR NORTE A
DESOBEDIÊNCIA. Jamais fazer o que o mestre mandava. Era o seu evangelho
particular. Habitava uma igreja da recusa. Natural perguntar, então: ONDE
ESTARIA BELCHIOR AGORA? Dou um passo adiante: homem de contracorrente, teria
subido ao palco da Maloca Dragão, festival que conjuga a revolução como lema,
num flerte superficial e episódico com o maio de 1968, mas cujas práticas
remontam a um personalismo do arco da velha?
TERIA
BELCHIOR DITO NÃO?
Ou, em
surpresa, cantaria somente? No mar da Praia de Iracema, arranharia seus versos
e depois enfiaria a viola no saco, como muitos artistas costumam fazer à sombra
dos governos? Não se conhece resposta para nenhuma dessas perguntas. São dias
de “coronelismo ilustrado”. Um despotismo esclarecido cujo mandonismo cerca-se
dos mesmos mecanismos de dominação oligárquico já vistos noutros ciclos do
poder no Ceará.
De
tempos em tempos, esse poder se renova. Por fora, tem ares de novidade. Por
dentro, porém, é muito antigo. De modo que é difícil extrair qualquer
ensinamento da futurologia. BELCHIOR SE FOI.
Primeiro,
quando desapareceu. Depois, definitivamente. Os mais jovens conheceram seu
corpo já sem vida, velado no mesmo Dragão do Mar que é signo ambíguo de um
Estado que junta, mas que também aparta.
Lá, no
dia seguinte ao da morte, uma segunda-feira, vi milhares de pessoas esperarem
numa fila para se despedir do artista. É uma imagem ainda potente: cearenses em
procissão para ver e falar uma derradeira vez àquele cuja obra traduzia à
perfeição a contingência de sermos pessoas em trânsito constante, resultado um
cruzamento de cores e credos. Desenraizados, víamos de repente no poeta essa
árvore de raiz profunda. Melhor voltar à obra, portanto. É nela que encontramos
a chave para o universo de Belchior. É
também uma maneira de reavivar não apenas esse gesto de recusa do poder quando
o poder se manifesta feito engrenagem vertical.
E O QUE
NOS DIZ A CANÇÃO DO POETA EXATO UM ANO DEPOIS DE SUA PARTIDA? Ensina o que
sempre ensinou. Ensina o que não custa lembrar. Lições de arrebatamento e
coragem: a entrega alucinada à paixão no dia a dia, o desejo constante de
arribar mas levar consigo a areia de nossa terra, o sentimento que une o preto,
o pobre, a estudante, o delírio de lidar com as coisas reais. HOJE PRECISAMOS
MAIS DE BELCHIOR DO QUE HÁ UM ANO. – A manchete e as imagens não fazem parte do
texto original -