UMA
NOITE MACABRA
Os sinos da Catedral badalavam e
ecoavam até os confins da cidade. Toda vez que morria alguém por lá era assim,
e eu sentia calafrios ao ouvir o som do bronze. Não era nada demais, mas é que
aquele barulho ensurdecedor deixava uma atmosfera mórbida que não era nem um
pouco agradável. No entanto, ERA VÉSPERA
DE NATAL, O CÉU ESTAVA LIMPO E CORRIA UMA LEVE BRISA DE VERÃO. Eu e meus amigos estávamos todos
empolgados com a data, na expectativa de receber os presentes, aliás, toda a
cidade já estava preparada para isso, havia pinheiros decorados por toda a
parte e o movimento no modesto comércio era agitado. BARRA DO IMBÉ era um
lugarejo pequeno, de casinhas pintadas com cores primárias e janelas e portas
que davam diretamente para a calçada. Todos se conheciam. À noite, nos
reuníamos na frente das casas e ficávamos lá, escutando histórias contadas
pelos mais antigos, ou íamos assistir televisão na praça. Não, não é nenhum
engano. Àquela época, poucos tinham acesso a esse luxo e os aparelhos ficavam
feito um monumento em armações de concreto, com bancos à frente. E todos os
dias eram iguais, as mesmas conversas, as mesmas pessoas... Os raros
acontecimentos diferentes eram interpretados como grandes eventos. COMO NESTE
LÚGUBRE, NATALINO E PITORESCO DIA. EU E DOIS AMIGOS NOS ENCONTRÁVAMOS TODAS AS TARDES EM NOSSO QUARTEL GENERAL, UM
BARRACO DE MADEIRA ABANDONADO NO SUBÚRBIO DA CIDADE, TÃO LONGE QUE ERA
CONHECIDO COMO “ESCONDIDO”. É claro que o assunto não poderia ter sido outro e Bertholdo abriu a
sessão com seu já costumeiro tom grave e cheio de propriedade. Parecia um
adulto, e tudo era tratado com uma seriedade ímpar, que aliás, só conheci
nele.— Amigos, temos algo importante a tratar... —disse o ruivo baixinho. — JÁ SABE QUEM MORREU?!?!?! Parece que estão me escondendo isso
desde a manhã... — disse Eliézer, o mais novo e medroso de todos. Era um
gordinho dentuço, com o olhar levemente assombrado.— Foi DONA MARIA PITANGA. Ouvi meu pai falando com um
vizinho... — respondi agachado perto da entrada. — Mas esta é a... — murmurou
Eliézer com cara de espanto. — A BRUXA — completou Bertholdo. O título que a velha ganhara tinha
seus motivos. Vivia num CASTELO
SOMBRIO, com um pequeno quintal atulhado de plantas umas sobre as
outras, desleixado como a própria aparência da mulher. Havia vários pés de
pitanga por lá, daí seu sobrenome. Diversas histórias circulavam sobre a velha,
contudo, uma era soberana. Diziam que ela havia matado sua filha, e o próprio
esposo, além de sua irmã gêmea, os enterrando nos fundos do CASTELO AMALDIÇOADO, como por pagamento a um pacto feito
com o próprio demônio. Eu achava que isso tudo não passava de imaginação do
povo. Ela era estranha deveras, soturna e escanzelada, mas nada que fosse fora
do normal. Fiz questão de interromper Bertholdo. — Isso é uma tremenda bobagem
Bertholdo! Vai acabar assustando o Eliézer desse jeito. — disse, ao me
levantar. Com treze anos, eu era o mais velho e sentia a responsabilidade de
cuidar daqueles dois malucos. — Não é bobagem nenhuma Emídio. Veja o que
encontrei em sua casa... — retrucou, ESTENDENDO UMA GARRAFA TAMPADA COM UMA
ROLHA NA NOSSA DIREÇÃO.
— Você foi na casa dela?!?!?! —
perguntou Eliézer. — E o que há demais nisso? — redarguiu o ruivo. — Eu é que
digo isso!!! O que há demais nessa garrafa? - intervi. — Pois é nessa garrafa que você-sabe-quem
prendeu o príncipe deste mundo... — Não há nada nesta garrafa... — disse
acremente. — Você não pode ver, apenas ela. Estava em um altar cheio de velas
vermelhas em volta. — E por que você retirou de lá, seu merda! —esbravejou o
menino dentuço, andando de um lado para o outro. — Precisamos dela para nos
livrarmos de MARIA PITANGA. — respondeu prontamente.
Parecia que ele tinha resposta para tudo que perguntássemos. — Nos livrarmos
como, seu louco? Ela já morreu! — gritou Eliézer, muito abalado com o tema de
nossa sessão de hoje. Até então, nunca tínhamos nos envolvido em nada parecido.
Apenas investigações bisbilhoteiras a respeito da vida dos outros, furto de
frutas nos quintais alheios, enfim, a mais pura molecagem. — MORREU, MAS
ELA AINDA TEM UMA LIGAÇÃO COM ESSE MUNDO E SEU ESPÍRITO FICARÁ VAGANDO,
COMETENDO SUAS ATROCIDADES. — Atrocidade está cometendo você com a minha paciência. Vamos Eliézer,
Bertholdo não está muito bem hoje... — disse virando-lhe as costas. — Esperem!
Eu tenho um plano! — E qual é o seu plano brilhante? —perguntou o gordinho num
jeito de deboche. — HOJE À NOITE, IREMOS ATÉ O CEMITÉRIO, CRAVAREMOS UMA ESTACA
NA VELHA E PRENDEREMOS SEU ESPÍRITO NA GARRAFA. DEPOIS A ENTERRAMOS E TUDO
ACABOU. -sussurrou nosso líder. — Ela é uma bruxa, não uma vampira...
—corrigi-o.— Então admite que ela seja uma bruxa? —perguntou astuciosamente.—
É... talvez ela seja. — respondi baixando a cabeça, um pouco envergonhado. Ele
havia feito eu me trair pelas minhas palavras. Ele quase sempre conseguia o que
queria, com sua oratória. — Esquecem de uma coisa. Hoje é Natal... —lembrou
Eliézer. — e, além disso, eu jamais entraria num cemitério. — acrescentou,
fazendo menção de sair do barraco. — Antes da meia-noite estaremos em casa,
quanto a isso, não haverá problema algum. Mas desde o início eu soube que você
não teria coragem... —argumentou Bertholdo. Uma arma infalível, a propósito. MESMO BORRANDO AS CALÇAS, O GORDINHO NUNCA
ADMITIRIA TER MEDO DE COISA ALGUMA. — MAS EU NÃO TENHO MEDO. O fato é que eu não quero
perder a ceia de Natal. Minha mãe está preparando um pernil delicioso, além de
rabanadas. Adoro rabanadas. E eu pedi uma bicicleta este ano, estou ansioso por
vê-la... — Terá tempo suficiente para andar na sua magrela nova, eu lhe
prometo. Então está decidido assim. Às oito horas, na minha rua. E iremos fazer
o serviço. Pelo bem de todos. Dispensados! — disse ele feito um sargento e
saímos calados. Certa vez o apelidamos de Sargento Ferrugem, devido seu
comportamento autoritário, seu cabelo ruivo e as sardas acastanhadas nas maçãs
do rosto. A verdade é que, assim como Eliézer, eu não tinha nenhuma vontade de
ir naquele lugar funesto. A placa logo na entrada do cemitério - “NÓS QUE
AQUI ESTAMOS, POR VÓS ESPERAMOS” - me dava arrepios. Afinal, não havia nada melhor para se
por no lugar de descanso dos mortos? Isso me parecia um mau agouro, como se
eles permanecessem na expectativa do nosso embarque na necrópole, a derradeira
viagem. Todavia, Bertholdo possuía um enorme poder de persuasão, daria,
inclusive, um excelente advogado. Às oito horas meus avós e tios, primos mais
velhos e recém nascidos, todos se encontravam em minha casa, saboreando um ceia
singela, típica do interior, rica em frutas e carne de porco, e a tão popular
rabanada.
Naquela época, tínhamos o
costume de filar a bóia do Natal na casa de todos os amigos antes da
meia-noite, e foi com essa desculpa que eu saí de casa e encontrei-me com
Eliézer e Bertholdo, conforme o
combinado. A noite estava nublada e ameaçava chover, o calor era sufocante.
Seguimos calados até o cemitério, cercado por arame farpado e algumas graxas,
um tipo de hibiscos de flores vermelhas, mal podadas e disformes,
entrelaçando-se nos galhos de árvores desfolhadas, que também existiam em seu
interior e que causavam arrepios à distância. Aproximamo-nos do portão de
madeira velho, cheio de limo e tentei abrí-lo. — Está trancado... — eu disse. — ISSO É IRÔNICO,
NÃO É MESMO?!?!?! COMO SE ALGUMA ALMA PENADA PRECISASSE DO PORTÃO PARA SAIR DO
CEMITÉRIO!!! —disse Bertholdo passando por entre a cerca, com certo
cuidado. Trazia um grande saco de pano amarelado e uma atiradeira na cintura. —
Vocês não vêm?— Mas é claro que vou! — respondeu Eliézer falseando seu terror
de forma bastante teatral, acompanhando o ruivo, e eu os segui. Chegamos até
uma cova recente, sem grama, sem flores, nem homenagens.— E agora? — perguntei.
— Segure a garrafa aqui. — disse-me, tirando o artefato de vidro do saco de
pano e entregando-me. Empunhou a estaca - que não era pequena como eu a
imaginava, contudo, não era grande o suficiente para alcançar o peito da velha
a sete palmos de terra - e preparou-se rapidamente para o golpe, mas foi
interrompido pelo gordinho. — DEIXE QUE
EU FAÇA ISSO!!! — disse ele
tomando-a das mãos de Bertholdo, com uma súbita e inesperada coragem. Até hoje
não sei o porquê dessa atitude. Não fazia o menor sentido! Que ele escondesse
seu medo de nós, e principalmente de Bertholdo, que usara isso como arma contra
ele, tudo bem, mas daí a ele próprio executar o plano do ruivo, isso não tinha
nenhum sentido. ELE MIROU A ESTACA NO CENTRO DO SEPULCRO E CRAVOU-A COM TODAS
AS FORÇAS QUE POSSUÍA, CORTANDO AS MÃOS NO ATO.— ACABOU? — perguntei secamente,
e ao mesmo tempo perturbado. Desejava sair dali o quanto antes. Teria sido
melhor não ter perguntado. Subitamente o chão tremeu, numa proporção que não
chegava a ser um terremoto no Japão, mas que poderia ser sentido a uma
considerável distância e então deixei cair a garrafa que espatifou-se no chão,
ao mesmo tempo em que fendas enormes se abriram nele, deixando vir a tona
vermes, baratas, ratos e a maior quantidade de imundície que já vi em toda
minha vida, como se fugissem de algo. Senti que era o mesmo que deveríamos
fazer e como numa transmissão de pensamento, corremos apavorados, gritando por
socorro, mas incrivelmente, ninguém parecia nos escutar. Em dado momento, já
quase na cerca por onde passamos, demos por falta de Eliézer e olhamos para
trás. O GORDINHO
HAVIA FICADO PRESO EM ALGUMA COISA, E VOLTAMOS CORRENDO PARA AJUDÁ-LO.— ELA
ESTÁ ME SEGURANDO!!! ELA ESTÁ ME SEGURANDO!!! — repetia ele aos berros, cravando suas unhas
ao chão na ânsia de livrar-se do que quer que fosse que o estivesse prendendo e
fugir conosco. Então vimos surgir da sepultura a velha, tão horripilante quanto
antes, porém, com os cabelos completamente soltos e desgrenhados e os olhos
vermelhos e brilhantes como fogo. Tinha um grito medonho, como uma
rasga-mortalha, semelhante a uma gargalhada estridente. Caímos e recuamos um
pouco. Eliézer estava sendo puxado para dentro da cova e desesperadamente
tentava se agarrar ao chão.
Estiquei
um galho em sua direção, mas ele não pode alcançá-lo, e então o vi desaparecer
chorando e implorando por socorro, chamando por sua mãe. — Vamos embora! Vamos!
Não podemos ajudá-lo mais! Venha! —gritava Bertholdo, O MAIS MEDROSO DOS CORAJOSOS, puxando-me pelas
mãos. — Não conte isso a ninguém! Ninguém, me ouviu? — insistia ele pelo
caminho, enquanto chorávamos em passo estugado de volta para casa. AQUELE FOI O PIOR NATAL DA MINHA VIDA.
COMO FOI DIFÍCIL IR PARA CASA, E PENSAR EM MEU AMIGO QUE NÃO VERIA NUNCA MAIS!
Seus pais o procuraram por dias, meses, anos, incessantemente. Interrogaram a
mim e a Bertholdo, e mentimos deliberadamente. E mesmo que quiséssemos dizer a
verdade, ninguém nos acreditaria, até porque nós mesmos não podíamos acreditar
no que havia acontecido. A bruxa existia de fato e levara nosso amigo, que deve
ainda hoje estar abraçado ao colo dela, em seu sono eterno. Eu e meus pais
mudamos no limiar do ano seguinte, devido a uma nova oportunidade de emprego na
capital e perdi contato com Bertholdo, só voltando a vê-lo nas comemorações do
natal deste ano, quando fomos passar a data com meus avós em BARRA DO IMBÉ.
Ferrugem estava internado há quase uma semana, vítima de pneumonia. Seu estado
me desesperou. Estava só pele e osso. Continuava a insistir para que eu não
contasse o ocorrido no ano passado a ninguém, o que tornei a prometer segurando
suas mãos. DESPEDI-ME
COM OS OLHOS CHEIOS DE LÁGRIMAS E NUNCA MAIS VOLTEI A VÊ-LO. BERTHOLDO MORREU
ÀS 23:34 DO DIA VINTE E QUATRO DE DEZEMBRO. OUTRO NATAL!!!
Dois anos seguidos!!! Não podia ser coincidência, era a bruxa, definitivamente.
Desde então carrego este fardo sozinho, e espero todos os natais como a própria
morte. Passou um ano, dois, três... décadas se passaram, mas isso só serviu
para aumentar meu temor por esta data. Por que apenas eu restei daquele pequeno
grupo de garotos do interior que ousou violar o túmulo de uma bruxa, em pleno
natal? Sei que a velha me espreita, e a qualquer dia me alcançará. Tornei-me um
adulto triste e taciturno, e hoje temo não apenas por mim, mas por minha mulher
e meu filho, que, aliás, não sabem nada sobre o assunto, assim como nenhuma
outra pessoa. Cumpri o que prometera. Exceto por este relato, que guardo a sete
chaves, e que se algum dia for de conhecimento de alguém, é porque certamente
meu encontro com a bruxa já terá sido certo. Antes que eu me esqueça, naquela
lúgubre, natalina e macabra noite, Eliézer ganhara de fato uma bicicleta,
guardada ainda intacta em sua casa na BARRA DO IMBÉ. Nunca mais esqueci o rosto
do gordinho sendo tragado pela bruxa... (EXTRATO
DO DIÁRIO DE SR.ª MICHELLE F. GARCIA, ESPOSA DO SR. EMÍDIO CASTRO GARCIA - 27
DE DEZEMBRO DE 1987) Oh! Como encontrei forças para escrever em meu diário, depois de
tanto sofrimento?!?!?! Como poderei dizer isto? Apenas Deus pode dar forças aos
que o temem! Eu, meu marido e meu filho viemos a BARRA DO IMBÉ - terra em que
ele nasceu - muito por insistência minha, pois ainda não a conhecia, assim como
meu filho, aproveitando os festejos de natal. Sempre foi um homem sério, mas
desde que decidimos que viríamos aqui, mudou por completo. Vivia calado e
pensativo. Cheguei a pensar que se tratasse de alguma paixão da juventude, mas
parece que pressentia algo.
Antes fosse uma mulher!!! Nos
hospedamos em um hotel pequeno, distante uns dois quilômetros do centro, o que
não era nem um pouco longe, considerando-se o tamanho da cidade. Estava tomando
banho, preparando-me para a ceia do dia vinte e quatro, quando ouvi um som
pavoroso. Um grito, seguido de vidro a estilhaçar-se e madeira se quebrando.
Enrolei-me em uma toalha rapidamente e fui ver o que acontecera. Meu filho
estava próximo a uma janela inteiramente destruída, chorando desesperadamente.
Um choro que assemelhava-se a uma gargalhada, de tão intenso que era. LÁ EMBAIXO JAZIA MEU AMADO EMÍDIO, COM AS PERNAS E
BRAÇOS CONTORCIDOS DE FORMA BIZARRA, COM A APARÊNCIA DE UM BONECO MARIONETE. Uma grande poça de sangue se
formava rapidamente sob seu corpo, e seus olhos vitrificados, tinham uma
expressão de profundo terror...
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