COM O DESAFIO DE PASSAR UM MÊS EM
HAVANA COM APENAS 15 DÓLARES, O REPÓRTER NORTE-AMERICANO PATRICK SYMMES NARRA
SEU MERGULHO NA SOCIEDADE CUBANA E OS DIVERSOS "JEITINHOS" A QUE
PRECISOU RECORRER PARA OBTER COMIDA, SE LOCOMOVER E ATÉ MESMO PARA DESTILAR RUM
CASEIRO.
NAS DUAS PRIMEIRAS
DÉCADAS da minha vida, acho que nunca passei mais de nove horas sem comer. Mais
tarde, fiquei sujeito a períodos mais longos de fome, mas sempre voltei para
casa, fui recebido com festa, comi tudo o que quis, no momento que quis, e
recuperei o peso que tivesse perdido. Além disso, segui a trajetória habitual
de uma vida americana, ganhando meio quilo de peso por ano, década após década.
Quando decidi ir a Cuba e viver por um mês consumindo apenas aquilo que um
cubano comum pode consumir, meu peso havia atingido 99 quilos; nunca tinha sido
tão alto. Em Cuba, o salário médio é de US$ 20. Médicos chegam a ganhar US$ 30,
e muitas outras pessoas ganham só US$ 10. Decidi que me concederia o salário de
um jornalista cubano: US$ 15, a renda de um intelectual oficial. Sempre quis
ser um intelectual, e US$ 15 representava uma vantagem significativa sobre os
proletários que constroem paredes de alvenaria ou cortam cana por US$ 12, e quase
o dobro dos US$ 8 da pensão de muitos aposentados. Com esse dinheiro, eu teria
de comprar minha ração básica de arroz, feijão, batata, óleo, ovos, açúcar,
café e tudo o mais de que precisasse. A primeira meia hora em solo cubano foi
passada nos detectores de metais. Depois, como parte de um novo regime de
vigilância que eu não havia encontrado em meus 15 anos anteriores de visita ao
país, passei por um interrogatório intenso, porém amadorístico. Não era nada
pessoal: todos os estrangeiros que chegaram no pequeno turboélice vindo das
Bahamas foram separados do grupo e extensamente interrogados. Como em Israel,
um agente à paisana me fez perguntas detalhadas, mas que não versavam sobre
assuntos importantes. ("Para que cidade você vai? Onde ela fica?"). O
objetivo era me provocar, revelar incoerências ou causar nervosismo. Ele não
olhou minha carteira ou perguntou por que, se eu planejava passar um mês em
Cuba, tinha menos de US$ 20 comigo. O olhar do agente se voltou aos demais
passageiros. Eu tinha passado. "Trinta dias", eu disse à senhora que
carimbou meu visto de turista. O prazo máximo. Havia uma placa pendente do teto
do aeroporto, com o desenho de um ônibus. Mas nada de ônibus. Só mais tarde,
explicou a mulher da cabine de informações. Haveria um ônibus -só um- naquela
noite, por volta das 20h, para levar os funcionários do aeroporto de volta a
suas casas. Eu teria de esperar seis horas. O centro de Havana fica a 16
quilômetros do aeroporto. PORQUE UM TÁXI CUSTARIA US$
25 --OU SEJA, MAIS QUE O MEU ORÇAMENTO PARA TODO O MÊS--, EU TERIA DE IR A PÉ. A mesma
mulher tirou do bolso do uniforme duas moedas de alumínio, e me deu: 40
centavos de peso, o equivalente a dois centavos de dólar. Na rodovia, a alguns
quilômetros do aeroporto, eu talvez encontrasse um ônibus para a cidade. E em
Havana eu poderia encontrar, ou teria de encontrar, uma maneira de sobreviver
por um mês. Ergui a mochila aos ombros e comecei a caminhar, com as moedas de
alumínio tilintando no bolso. Saí do terminal e atravessei o estacionamento,
chegando à via de acesso. Comecei a caminhar pela estrada, deixando o mundo
externo para trás a cada sólido passo. A intervalos de alguns minutos, táxis se
aproximavam, buzinando, ou carros particulares paravam ao meu lado e me
ofereciam uma jornada até a cidade por apenas metade do preço oficial. Eu
continuei caminhando, devagar, deixando para trás os velhos terminais e
contemplando os campos de vegetação esparsa. Os outdoors trombeteavam mensagens
do passado: BUSH TERRORISTA. Depois de caminhar 40
minutos, cruzei por sobre os trilhos da ferrovia em uma passarela e, ao chegar
à rodovia, tive sorte. O ônibus para Havana estava no ponto. Passada uma hora,
eu havia chegado ao centro de Havana e estava de novo caminhando, em busca de
um velho amigo. RACIONAMENTO As
primeiras pessoas com quem conversei na cidade --desconhecidos que vivem perto
da casa do meu amigo mencionaram o sistema de racionamento. Sem que eu
perguntasse, eles me mostraram suas cadernetas de racionamento e se queixaram
bastante. A caderneta --CONHECIDA COMO "LIBRETA"-- É O DOCUMENTO FUNDAMENTAL DA
VIDA CUBANA. QUASE NADA MUDOU NO SISTEMA DE RACIONAMENTO: AINDA QUE AGORA SEJA
IMPRESSA EM FORMATO VERTICAL, A CADERNETA É IDÊNTICA ÀS EMITIDAS ANUALMENTE
DURANTE DÉCADAS. O QUE MUDOU FOI A TINTA: HAVIA MENOS TEXTO NA CADERNETA. O
NÚMERO DE ITENS ERA MENOR, E AS QUANTIDADES TAMBÉM ERAM MENORES, MENOS DO QUE
EM 1995, A ÉPOCA DE FOME DO "PERÍODO ESPECIAL". Desde
então, a economia cubana se recuperou, mas o sistema cubano de racionamento
ainda não. Em 1999, o ministro do Desenvolvimento de Cuba me disse que a ração
mensal oferecia comida suficiente para apenas 19 dias, mas previu que esse
total logo subiria. Na verdade, caiu. Ainda que hoje o volume total de
alimentos disponíveis em Cuba seja mais alto e o consumo de calorias per capita
também tenha crescido, isso não se deve ao racionamento. O crescimento ocorreu
em mercados privatizados e hortas cooperativas, e por meio de importações
maciças; a produção de alimentos pelo Estado caiu 13% no ano passado e a ração
encolheu junto. A opinião geral é de que a ração mensal hoje só dá para 12 dias
de comida. A MINHA VIAGEM SERVIRIA PARA QUE EU FIZESSE O MEU PRÓPRIO CÁLCULO:
COMO ALGUÉM PODE SOBREVIVER DURANTE UM MÊS COM COMIDA PARA APENAS 12 DIAS? CADERNETA Cada
família recebe uma caderneta de racionamento. As mercadorias são distribuídas
numa série de mercearias (uma para laticínios e ovos, outra para
"proteínas", outra para pão; a maior delas cuida dos enlatados e
outros produtos embalados, de café e óleo a cigarros). Cada loja conta com um
administrador que anota na caderneta a quantidade de produtos retirada pela
família. Os vizinhos do meu amigo --marido, mulher e neto-- receberam a ração
padronizada de produtos básicos, que consiste, por pessoa, em: DOIS QUILOS
DE AÇÚCAR REFINADO MEIO QUILO DE AÇÚCAR BRUTO MEIO QUILO DE GRÃOS UM PEDAÇO DE
PEIXE TRÊS PÃEZINHOS RIRAM MUITO QUANDO PERGUNTEI SE RECEBIAM CARNE DE VACA.
"FRANGO", DISSE A MULHER, MAS ISSO PROVOCOU UIVOS DE PROTESTO:
"QUAL FOI A ÚLTIMA VEZ QUE RECEBEMOS FRANGO?", O MARIDO QUESTIONOU.
"POIS ENTÃO, É VERDADE", ELA DISSE. "JÁ FAZ ALGUNS MESES."
A RAÇÃO DE "PROTEÍNA" É DISTRIBUÍDA A CADA 15 DIAS E CONSISTE NUMA
CARNE MOÍDA DE MISTERIOSA COMPOSIÇÃO, QUE INCLUI UMA BELA PROPORÇÃO DE PASTA DE
SOJA (SE A CARNE FOR SUÍNA, A MISTURA RECEBE O FALSO NOME DE
"PICADILLO"; SE FOR FRANGO, É CONHECIDA COMO "PUELLO CON
SUERTE", OU FRANGO COM SORTE). A RAÇÃO BASTA PARA O EQUIVALENTE A QUATRO
HAMBÚRGUERES POR MÊS, MAS ATÉ AQUELE MOMENTO, EM JANEIRO DE 2010, CADA UM SÓ
HAVIA RECEBIDO UM PEIXE --EM GERAL, UMA CAVALA SECA E OLEOSA. E HÁ OS OVOS. A
MAIS CONFIÁVEL DAS FONTES DE PROTEÍNAS, ELES SÃO CONHECIDOS COMO
"SALVA-VIDAS". ANTIGAMENTE, A RAÇÃO ERA DE UM OVO POR DIA; DEPOIS, UM
OVO A CADA DOIS DIAS; AGORA, É DE UM OVO A CADA TRÊS DIAS. EU TERIA DEZ DELES
COMO RAÇÃO PARA O MÊS SEGUINTE. Meu amigo me conduziu a
uma residência particular no bairro de Plaza, onde eu alugaria um apartamento
por um mês --a única despesa que deixo fora de minhas contas aqui. O
apartamento era espartano, em estilo cubano: dois cômodos, cadeiras sem
almofadas, um fogareiro de duas bocas numa bancada e um frigobar. No meu
segundo dia, comecei comendo um bagel de gergelim, e distraidamente o devorei
inteiro, como se fosse possível comprar outro. De acordo com um aplicativo de
contagem de calorias instalado em meu celular, o bagel tinha 440 calorias. Tudo
que comi pelos 30 dias seguintes foi anotado com ajuda do pequeno teclado,
registrado, tabulado em termos diários e semanais, dividido em proteínas, carboidratos
e gordura, avaliado por meio de gráficos de barras. Um homem ativo do meu
tamanho (1,88 metro, 95 quilos) precisa de cerca de 2,8 mil calorias diárias
para manter o peso. Eu ainda não tinha conseguido quaisquer outros suprimentos
de comida, e concluí meu café da manhã quando a faxineira de meu senhorio me
deu dois pequenos copinhos de café muito açucarado (75 calorias). Da mesma
forma que os cubanos aproveitam lacunas nos regulamentos para sobreviver,
decidi explorar minha evidente condição de estrangeiro em meu benefício, e
passei o dia entrando e saindo de hotéis nos quais poucos cubanos estão
autorizados a entrar. Isso me dava acesso a ar condicionado, papel higiênico e
música. Passei pela segurança no Habana Libre, o antigo Hilton, e subi de
elevador até o topo, que oferecia lindas vistas de Havana ao crepúsculo. A
boate ainda não estava aberta, mas entrei mesmo assim; apanhei um ensaio em
curso. Um roqueiro russo, com uma banda de apoio de mais de 30 músicos, estava
passando o som do show que faria mais tarde. O hotel serviu chá e água mineral
em garrafas aos músicos, e aproveitei a oportunidade para beber bastante. O
sabor adstringente do chá --mediado por muito açúcar- finalmente começou a
fazer sentido para mim. Era a bebida dos noviços em um mosteiro, das pessoas
famintas e enregeladas. Seu objetivo é matar o apetite. Havia restos de um
lanche. Encontrei apenas um sanduíche e meio de queijo, abandonado em um
guardanapo perto da seção de cordas; coloquei o guardanapo no bolso. Caminhei
por uma hora, atravessando Havana para voltar ao meu quarto, passando por
dezenas de lojas novas --açougues, bares, cafés, pizzarias e outros prolíficos
fornecedores de alimentos vendidos apenas em moeda forte. Detive-me por longo
tempo, contemplando os imensos peitos de peru expostos na vitrine de uma das
lojas. Quando enfim cheguei ao meu quarto, os sanduíches se haviam desintegrado
no meu bolso, em uma massa de migalhas, manteiga e queijo sintético, mas os
comi mesmo assim, devagar, prolongando a experiência. Eu sempre havia
desdenhado os cubanos que se dispõem a aplaudir o regime em troca de um
sanduíche, mas, já no meu segundo dia na ilha, eu me sentia disposto a
denunciar Obama em troca de um biscoito. NA MANHÃ DO TERCEIRO DIA, caminhei
mais de duas horas por Havana em busca de comida, queimando 600 calorias, o
equivalente aos sanduíches consumidos um dia antes. Eu havia presumido,
erroneamente, que poderia simplesmente comprar a comida de que precisaria para
o mês. No entanto, por ser norte-americano, eu era inelegível para o
racionamento, nos termos do qual o arroz custa dois centavos de dólar o quilo.
Como "cubano" vivendo com salário de US$ 15 ao mês, eu não teria como
comprar comida fora do sistema, nas dispendiosas lojas que vendem alimentos em
dólares. Os cubanos chamam essas pequenas lojas, que vendem de tudo, de pilhas
e carne bovina a óleo de cozinha e fraldas, de "EL SHOPPING". Depois
de horas de frustração, e incapaz de comprar qualquer comida, voltei de ônibus
ao apartamento. Eu não tinha almoçado. Por fim, já que não conseguia mais ficar
parado, corri para fora da casa e, seguindo uma dica, encontrei uma casa a
alguns quarteirões de distância em cujo portão havia um cartaz com a palavra
"café". Na parte traseira da casa havia uma janela gradeada, e eu
passei o equivalente a 40 centavos de dólar pela janela. Uma mulher me serviu
um pãozinho com apresuntado. Um copo de suco de papaia me custou mais 12
centavos de dólar. Embora eu tentasse comer devagar, o almoço desapareceu em
questão de minutos. A ESSE RITMO --50 CENTAVOS DE DÓLAR POR REFEIÇÃO-, MINHA RESERVA DE
DINHEIRO SERIA CONSUMIDA RAPIDAMENTE, E SAÍ DAQUELE QUINTAL PROMETENDO A MIM
MESMO QUE JANTARIA QUASE NADA. De manhã, notícias
piores me aguardavam quando tentei me vestir. Descobri que o zíper de minha
calça estava enguiçado. Como parte do meu esforço para parecer e me sentir
cubano, só havia levado duas calças na bagagem. Calças são um dos muitos itens
não alimentícios também distribuídos como parte da ração, e isso em geral quer
dizer apenas uma calça por ano. A maioria dos cubanos se vira com apenas um ou
dois exemplares de cada peça de roupa. Por isso, o zíper quebrado teria de ser
reparado --em janeiro, não havia distribuição de calças. Depois do fracasso de
alguns esforços nada competentes para consertar o zíper sozinho, compreendi que
teria de gastar dinheiro, ou trocar alguma coisa, pelo trabalho de um alfaiate.
Café da manhã: duas xícaras de café açucarado. Total de 75 calorias. MERCADO NO QUARTO
DIA, saí para comprar comida, experiência ridícula. Por sorte, o
apartamento que aluguei ficava perto do maior e melhor mercado de Havana, que
não é nem tão grande e nem tão bom assim. O mercado era um "agro", ou
seja, um sacolão. Há quem compare esses mercados às feirinhas de produtos
orgânicos norte-americanas, mas não havia conversa amistosa entre comprador e
vendedor, e sim um ruidoso, lotado e barulhento corredor repleto de bancas
vendendo todas o mesmo estreito elenco de produtos, a preços aprovados pelo
Estado: abacaxis, berinjelas, cenouras, pimenta verde, tomate, cenoura, iúca,
alho, bananas-da-terra e não muito mais. Numa sala separada, havia carne de
porco à venda, pilhas trêmulas de carne rosada e pálida, manipulada por homens
de mãos nuas. Carne era um produto além de meu alcance, embora houvesse
"gordura" à venda por US$ 1 (27 pesos) o quilo. Esperei na fila para
converter todo o meu dinheiro --18 pesos conversíveis, a moeda forte cubana--
em pesos comuns. A pilha de cédulas desgastadas e sujas que resultou da
transação equivalia a 400 pesos, ou cerca de US$ 16, pela cotação do mercado
negro de Havana. Enfrentei as multidões e comprei uma berinjela (10 pesos),
quatro tomates (15), uma cabeça de alho (2) e algumas cenouras (13). No balcão
da padaria, a mulher que atendia me disse que pães só podiam ser vendidos a
portadores de cadernetas de racionamento --mas mesmo assim me vendeu cinco
pãezinhos, avidamente apanhando cinco pesos de minha mão. Só fui bem tratado
pelo vendedor de tomates, que me ofereceu um tomate de brinde. DOIS PESOS Cuba
tem duas moedas, o peso valioso, oficialmente conhecido como CUC, e chamado de
cuc, fula, chavita e convertible; ele foi introduzido para eliminar a presença
de moeda estrangeira no país e seu valor deveria equivaler ao do dólar
norte-americano, em termos gerais, ao menos antes da comissão de 20% cobrada
pela conversão. A outra moeda é o humilde peso comum (conhecido como peso). Os
salários dos cubanos são pagos em pesos comuns, e para comprar qualquer coisa
importante eles precisam convertê-los em CUC, à taxa de 24 por um. Uma caixinha
de macarrão frito no bairro chinês de Havana custava "72/2,5",em
pesos comuns e CUC, respectivamente, e o preço nos dois casos representava
cerca de 15% da renda mensal média. Comprei 1,5 quilo de arroz por pouco mais
de 10 centavos de dólar, e um saco de feijão vermelho. COM ISSO, A
CONTA FINAL SUBIU A CATASTRÓFICOS US$ 2, POR UMA QUANTIDADE DE COMIDA QUE
PRODUZIRIA APENAS ALGUMAS REFEIÇÕES. Alguns moleques me
seguiram até a saída, murmurando "camarão, camarão, camarão", em um
esforço para me vender alguma coisa. Do lado de fora, um homem viu que eu me
aproximava e subiu numa árvore, descendo com cinco limões que me ofereceu. (Não
era um limoeiro, e sim o lugar em que guardava seus produtos de mercado negro.)
Cheguei em casa cambaleando com o peso do arroz e dos legumes, com cara,
segundo a mulher de meu senhorio, de homem divorciado a ponto de começar vida
nova. DINHEIRO As
calorias acumuladas inevitavelmente me levaram a refletir sobre o outro lado da
equação: dinheiro. Como eu conseguiria sobreviver dali a duas semanas, se a
cada vez que fizesse compras gastasse US$ 2? Eu continuava a fazer tudo a pé, o
que me custava 60 minutos apenas para chegar aos hotéis de turistas em Vedado
(nos quais não encontrei mais nenhum sanduíche extraviado), ou para encostar o
rosto contra as grades de ferro de algum restaurante, assistindo, em companhia
de quatro ou cinco cubanos, à banda que tocava mambo para os estrangeiros. A
cada dia eu era abordado por cubanos que, de uma ou outra maneira, me pediam
dinheiro. E sabia que minhas escolhas pessoais seriam igualmente desagradáveis,
algumas semanas adiante. Será que eu deveria me posicionar em uma esquina e
pedir dólares a desconhecidos? Até que ponto uma pessoa precisa estar faminta
para se tornar parecida com a adolescente pela qual passei em uma calçada de
Vedado naquela tarde; ela trazia um bebê no colo, mas se voltou para mim e
disse: "Deseas una chica sucky sucky?" CAFÉ Se era questão de chupar
alguma coisa, eu já sabia exatamente o quê. Apanhei-me contemplando os Ladas
que passavam, para ver se as tampas de seus tanques de gasolina tinham trancas.
Com uma mangueira e um recipiente plástico, eu poderia obter cinco litros de
gasolina e vendê-la por intermédio de um amigo no bairro chinês. Mas todos os
carros de Cuba têm trancas nas tampas do tanque de combustível, ou ficam
protegidos atrás de portões trancados, à noite. Já havia homens demais, e bem
mais durões que eu, envolvidos nesse tipo de trabalho. Cuba não é terra para
ladrões amadores. Eu precisava de café, mas nenhuma loja tinha estoque desse
produto essencial. Nem mesmo a loja do meu bairro que opera com moeda forte
tinha café, e visitas repetidas aos supermercados que vendem em dólares, em
Vedado, e às lojas de diversos hotéis resultaram em zero café, por todo o mês.
Certa vez vi um pacote de meio quilo de Cubacafe, a marca de exportação, à
venda em um cinema da Velha Havana. Mas custava 64 pesos, e mesmo que a
abstinência de café estivesse me matando, eu não tinha como pagar tão caro, ou
andar toda aquela distância de novo. Da janela do meu banheiro, percebi que a
loja de produtos racionados estava aberta, e fui até lá. Em uma prateleira,
havia cinco sacos de café. Eram da marca doméstica, Hola, um café claro, em
contraposição ao pó escuro do Cubacafe, e o preço era de pouco mais de um peso
pelo primeiro pacote de 100 gramas, e de cinco pesos por pacote adicional.
Havia cerca de uma dúzia de pessoas disputando o pão e o arroz, e por isso pude
estudar as duas lousas nas quais a loja anunciava os produtos disponíveis. A
maior delas mencionava os produtos básicos --os primeiros dois quilos de arroz
custam 25 centavos de peso; cada comprador pode comprar um quilo adicional por
90 centavos de peso. O limite de compras era de três quilos de arroz ao mês,
para prevenir que as pessoas comprassem arroz e o revendessem em busca de
lucros. A lousa menor informava sobre os "produtos liberados", e
continha uma lista menor de coisas como cigarros e outros bens que podem ser
adquiridos sem restrições. Eu disse "el último", e tomei lugar na
fila por trás do comprador que antes era o último. Logo chegou uma mulher com
uma sacola plástica nas mãos e disse "el último", e se tornou a
última da fila. O homem que me atendeu sorria, mas parecia agitado. Era alto,
negro, e usava uma barba rala, mal cuidada. Quando pedi café, fez um gesto
negativo com as mãos. Não era preciso explicar: um estrangeiro não tem direito
a ração, e de qualquer jeito não havia café. Tentei ganhar tempo, esticando uma
conversa à qual ele só respondia com gestos. Perguntei se não havia café em
parte alguma, e disse que havia procurado por toda a cidade, sem encontrar.
Acrescentei que realmente gostava de café. Sabe? "Os cubanos bebem muito
café", ele por fim respondeu. Tendo estabelecido uma conexão, eu acenei com
a cabeça e perguntei se não seria possível conseguir café em algum lugar.
"Não", ele respondeu. Sério? Talvez alguém, em algum lugar? Nem
precisa ser muito. Ele meneou a cabeça; o gesto do talvez. Quem? "A Sra.
__", respondeu. E onde posso encontrá-la? Como se estivesse guiando um
cego, ele saiu de trás do balcão, me apanhou pelo braço e me conduziu até a
rua. Caminhamos apenas 10 passos, sem mudar de calçada. Ele entrou na primeira
porta, e distraidamente apertou o traseiro de uma mulher que estava passando.
("Ei!", ela exclamou, furiosa. "Quem você acha que é?")
Paramos na porta de um apartamento localizado imediatamente atrás da loja de
produtos racionados. Ele bateu. A PORTA FOI ABERTA POR UMA
MULHER COM UM BEBÊ NO COLO. "CAFÉ", ELE DISSE. PAGUEI COM UMA NOTA DE
20 PESOS. ELA ME DEU UM PACOTE DE HOLA E CINCO PESOS DE TROCO. "SÓ
ISSO?" ERA TRÊS VEZES MAIS QUE O PREÇO COBRADO NA LOJA, A ALGUNS PASSOS DE
DISTÂNCIA, MAS DESCOBRI MAIS TARDE QUE OS CUBANOS TAMBÉM TÊM DE PAGAR O MESMO
ÁGIO. O homem fez que sim com a cabeça. Seu nome era Jesús. Voltamos
à loja. "Pão?", perguntei. Ele perguntou ao seu chefe, que respondeu
com um "não" em volume alto o bastante para que a loja toda ouvisse.
Perguntei de novo. Ele repetiu a pergunta ao chefe. Não ouvi um novo não. Passei-lhe
a nota de cinco pesos e recebi cinco pãezinhos. Depois disso, pude comprar tudo
que queria. Em companhia de Jesús, ninguém perguntava coisa alguma. Ninguém me
pediu para ver minha caderneta de racionamento, nas compras dos itens básicos,
e pelo resto do mês paguei o mesmo preço que os cubanos, pela mesma merda de
comida. PEDESTRE No
sexto dia, fui a pé aos subúrbios, saindo de meu bairro, Plaza, e passando por
Vedado rumo ao oeste, e pelo imenso cemitério de Colón, que abriga os mausoléus
e os anjos alados das famílias ricas do passado cubano, bem como os sepulcros
de concreto da classe média. Um jovem chamado Andy caminhou comigo por algum
tempo, entusiasmado por aprender mais sobre os Estados Unidos. ("TODOS
QUEREMOS VIVER LÁ"); ele me convidou para conhecer a barbearia de um amigo. Mais
tarde, de novo sozinho, passei por alguns cafés, e estudei com atenção todas as
pequenas barracas. Uma delas oferecia "pão com hambúrguer" por 10
pesos, o menor preço que havia visto até então. Mas ainda assim seria um gasto
alto demais para aquele dia. COMIDA ROUBADA Fui
perseguido por duas mulheres que acenavam com uma lata imensa de molho de
tomate e gritavam "15 pesos! É para os nossos filhos!" Não parei, mas
depois percebi que havia cometido um erro. Ao preço de 15 pesos por uma lata em
tamanho restaurante, o molho de tomate seria uma pechincha. Comida roubada é a
mais barata. E nada poderia ser mais normal em Cuba do que caminhar carregando
uma lata gigante de alguma coisa. Poucos quarteirões adiante, cheguei por acaso
ao Museu do Ministério do Interior. A equipe era formada por mulheres com o
uniforme do Minint, com ombreiras verdes e saias na altura do joelho.
Informaram-me que o ingresso custava dois CUC. Eu não tinha como pagar, é
claro. E quanto custa o ingresso para os cubanos? Pergunta errada. Ninguém
pechincha com o Minint. Eu disse que voltaria outro dia, mas fiz hora no saguão
de entrada, que serve como local para exposição: uma bancada de metralhadoras,
fotos da grande sede do Minint, perto do meu apartamento, e citações em letras
grandes de frases de Raúl Castro e outras autoridades, com elogios aos
patriotas do Minint por protegerem o país. Uma das mulheres, que usava o cabelo
preso em um coque severo, estava me observando. Embora eu não tivesse
fotografado nada e nem tomado notas, ela parecia astuta. "Quem é
você?", ela perguntou. Eu sorri e comecei a caminhar para a saída.
"Você é jornalista?", ela quis saber. "Turista", disse,
olhando por sobre os ombros e caminhando apressado para a saída. "Você tem
credencial para vir aqui?", ela me perguntou, de longe. Continuei a
caminhar rumo oeste, por mais meia hora. Estava coberto em suor quando cheguei
à casa de Elizardo Sánchez, um dos alvos do Minint. PROGRESSO Quando contei a Sánchez
que havia caminhado até sua casa, como parte de um plano para passar 30 dias
vivendo e comendo como um cubano, ele me mostrou sua caderneta. "O
NOME DISSO É CADERNETA DE SUPRIMENTOS", disse ele, "mas é
um sistema de racionamento, o mais duradouro do mundo. Os soviéticos não
tiveram racionamento por tanto tempo quanto os cubanos. Nem mesmo o
racionamento chinês durou tanto." A escassez surgiu logo depois da
revolução; o sistema para a distribuição controlada de bens básicos já estava
em funcionamento em 1962. Depois de 50 anos de Progresso, o país está falido,
na prática. Em 2009, ervilhas e batatas foram retiradas da ração e os almoços
baratos nos locais de trabalho foram reduzidos às dimensões de lanches rápidos.
"Havia rumores sobre retirar coisas da ração, ou eliminar o sistema de vez",
disse Sánchez, sobre boatos que cativam os cubanos. Mas esses rumores
desapareceram em 1º de janeiro de 2010, quando novas libretas foram
distribuídas, a exemplo de todos os outros anos. ARTES DOMÉSTICAS
Sánchez mantém alegre ignorância quanto às artes domésticas. "Dois quilos
de arroz a 25 centavos", ele disse, tentando recordar sua ração mensal.
"Acho. E mais meio quilo a 90 centavos. Acho. Vamos perguntar às mulheres.
Quanto a isso, elas dominam". Ele chamou a mulher com quem vive, Barbara.
Além de trabalhar como advogada em defesa de prisioneiros políticos, ela
cozinha e ajuda sua mãe e uma sócia a manter uma padaria na cozinha de sua
casa. Elas compraram uma saca de trigo "à esquerda", o que significa
que se trata de farinha roubada, comprada de um contato. O custo foi de 30
pesos. Com isso e uma porção de carne moída comprada clandestinamente no
açougue, elas fazem pequenas empanadas vendidas a três pesos a unidade, ou
cerca de oito por US$ 1. É ASSIM QUE CUBA SE AJEITA: AS LOJAS DE PRODUTOS RACIONADOS TÊM
MORADORES DOS BAIRROS COMO FUNCIONÁRIOS; ELES ROUBAM INGREDIENTES E OS VENDEM
AOS VIZINHOS, QUE PRODUZEM ALGUMA COISA COM ELES E REVENDEM A ESSES E OUTROS
VIZINHOS. Oito empanadas seriam um bom almoço, mas US$ 1 era preço fora do
meu orçamento. Barbara me deu duas delas, e eu as demoli com uma mordida. Ela
ouviu com expressão neutra, quando expliquei minha tentativa de viver dentro
dos limites do racionamento. "É UM BOM PLANO DE DIETA", comentou.
Outro dissidente que estava visitando a casa, Richard Rosello, entrou na
conversa. Ele tem um caderno no qual anota os preços dos produtos nos mercados
paralelos, também conhecidos como mercados clandestinos ou mercados mala preta.
"UM PROBLEMA É A COMIDA", disse Rosello. "MAS
TAMBÉM TEMOS O PROBLEMA DE COMO PAGAR A CONTA DE LUZ, O GÁS, O ALUGUEL. O PREÇO
DA ELETRICIDADE ESTÁ DE QUATRO A SETE VEZES MAIS ALTO QUE NO PASSADO". Elizardo
paga cerca de 150 pesos por mês de eletricidade --um quarto do salário médio
cubano. Como sobreviver, portanto? "Os cubanos inventam alguma
coisa", disse Barbara. Um dos truques é vender os bens racionados,
comprados a baixo preço, pelo valor de mercado. Foi assim que enfim consegui
comprar minha porção de 10 ovos. Sem a caderneta de racionamento, não tinha
como comprá-los legalmente. Mas ao anoitecer do dia anterior, eu havia esperado
perto da loja de ovos local, onde troquei um olhar com uma mulher idosa que
estava saindo com 30 ovos --um mês de suprimento para três pessoas. Ela os
comprou a 1,5 peso por unidade, e me vendeu 10 deles por dois pesos cada.
Voltou à loja e imediatamente comprou mais ovos, lucrando três ovos e alguma
sobra de dinheiro com a transação. Os dois caminhamos de volta para nossas
casas cuidadosamente, com medo de desperdiçar toda a ração mensal de proteína
por conta de um único tropeço. Barbara aproveitou para apontar um erro terrível
em meu plano. NOS ÚLTIMOS ANOS, A MAIORIA DAS FONTES FORA DE CUBA REPORTA QUE A
RAÇÃO INCLUI 2,5 QUILOS DE FEIJÃO PRETO. MAS HÁ ANOS ISSO NÃO É VERDADE. A
PORÇÃO DO MÊS ERA DE APENAS 200 GRAMAS. DEZ MIL CALORIAS HAVIAM DESAPARECIDO DO
MEU MÊS EM UM PISCAR DE OLHOS. Para atenuar o golpe,
Barbara decidiu me convidar para um "típico" almoço cubano. O
primeiro prato é arroz --a dois ou 2,5 quilos por mês, esse grão é o alimento
básico da dieta cubana. A porção diária de arroz reservada a cada cidadão
poderia ser guardada em uma lata de leite condensado. Trata-se de arroz
vietnamita de baixa qualidade, conhecido como "creole",
"feio" ou "microjet", este último termo uma referência
zombeteira a um dos planos de Fidel para irrigar safras agrícolas por meio de
um sistema de aspersão por gotas. O almoço típico inclui meia lata de arroz (a
outra metade fica para o jantar); era uma massa grudenta, mas minha fome ajudou
a considerá-lo saboroso. Depois, uma terrina de sopa de feijão. Cada terrina
continha apenas alguns feijões, mas o caldo era rico, reforçado com ossos de
boi. ("20 PESOS O QUILO, PARA OS OSSOS", DISSE BARBARA.
"MUITA GENTE NÃO TEM COMO COMPRÁ-LOS".) Eu não comia carne
bovina havia seis dias. Depois, ela me deu meia batata doce. "MUITO MELHOR
QUE A BATATA COMUM, EM TERMOS DE NUTRIÇÃO!", disse Elizardo, de algum
lugar do corredor. Também me serviram um ovo frito, ainda que Elizardo tenha
apontado, em novo grito, que "SE VOCÊ COMER UM OVO HOJE, NÃO PODERÁ COMER
AMANHÃ". Ou depois de amanhã. O ovo caiu muito bem. Dadas as dimensões
reduzidas do meu estômago, a refeição toda, incluindo as duas pequenas
empanadas, pareceu perfeitamente adequada. Mastiguei os ossos, extraindo
pequenos pedaços de carne. Era minha melhor refeição em alguns dias. Barbara
guardou cuidadosamente o óleo da frigideira. Richard, com seu caderninho de
preços, expôs a matemática dessa forma de alimentação. Uma "cesta
mensal" de comida racionada (que dura apenas 12 dias) custa 12 pesos por
pessoa, de acordo com as contas do governo. Nos 10 dias seguintes de cada mês,
as pessoas precisam comprar o mesmo volume de comida por 220 pesos, nos
diversos mercados livres, paralelos e negros. E ainda assim isso só conduz o
cidadão ao 22º dia do mês. As despesas mensais envolvidas em manter o mesmo
padrão de alimentação seriam de 450 pesos --o que supera a renda de milhões de
cubanos, e isso sem incluir roupas, transportes ou produtos para a casa.
Ninguém mais consegue comprar pratos e xícaras. Eles são roubados de empresas
estatais, quando possível, e vendidos no mercado negro. Quanto a roupas, é
preciso comprá-las usadas, em mercados de troca conhecidos como troppings, um
trocadilho com o apelido das lojas que vendem em moeda forte. Pessoas cuja
comida acaba vasculham latas de lixo ou se tornam alcoólatras para atenuar a
dor, disse Richard. Elizardo voltou à sala. "NÃO ESTAMOS FALANDO DO
HAITI, OU DO SUDÃO", disse. "As pessoas não caem nas ruas, mortas devido à
fome. Por quê? Porque o governo garante dois ou 2,5 quilos de açúcar, que tem
alto teor calórico, e uma porção diária de pão, e arroz suficiente. O problema
em Cuba não é a comida ou as roupas. É a completa falta de liberdade cívica, e
portanto de liberdade econômica, o que é exatamente o motivo para que exista a
libreta, para começar". Como no resto do mundo, o problema da comida na
verdade é um problema de acesso, de dinheiro. E o problema de dinheiro é um
problema político. NO SÉTIMO DIA, eu repousei. Deitado na cama com Victor Hugo, perdido na
contemplação daquele teste da bondade humana, era fácil esquecer por uma hora
que minhas gengivas doíam, que minha garganta estava repleta de saliva. Havana
está mudando, como as cidades costumam. A região central foi colocada sob o
controle de Eusebio Leal Spengler, o historiador da cidade. Leal recebeu
prioridade especial para materiais de construção, mão de obra, caminhões,
ferramentas, combustível, encanamentos e até mesmo torneiras e vasos
sanitários. Mas não é por isso que as pessoas o amam. Em lugar disso, explicou
meu amigo, o acesso "privilegiado" a suprimentos significa
simplesmente que há mais para roubar. UMA AMIGA ESTAVA REFORMANDO A
CASA NA ESPERANÇA DE ALUGAR APOSENTOS PARA ESTRANGEIROS, E PASSADOS ALGUNS
MINUTOS OUVIMOS UM CAMINHÃO FREANDO NA RUA, E O ESTRONDO DE UMA GRANDE BUZINA.
O MARIDO DELA ME FEZ UM SINAL APRESSADO, E ABRIMOS JUNTOS A PORTA DA FRENTE.
HAVIA UM CAMINHÃO PARADO À PORTA. EM 60 SEGUNDOS, TRÊS PESSOAS, ENTRE AS QUAIS
EU, DESCARREGARAM 250 QUILOS DE SACOS DE CIMENTO PORTLAND. O MARIDO PASSOU
ALGUM DINHEIRO AO MOTORISTA, NOTAS AMARFANHADAS, E O CAMINHÃO PARTIU
IMEDIATAMENTE. O caminhoneiro havia faturado com material de construção
destinado a alguma obra. Passamos meia hora transferindo o cimento a um canto
escuro de um quarto dos fundos, recobrindo os sacos com uma lona, porque as
letras da embalagem eram impressas em azul, o que configura propriedade do
Estado. Os sacos com letras verdes são destinados à construção de escolas. Os
sacos reservados ao uso dos cidadãos comuns vêm impressos em vermelho, e custam
US$ 6 a unidade, nas lojas do Estado. Ao contrário da maioria dos funcionários
cubanos, Leal de fato fez diferença na vida dos cidadãos. Reconstruiu os velhos
hotéis; meus amigos roubaram 250 quilos de cimento para construir seu novo
bangalô para turistas. Restaurou um museu, e meus amigos roubaram telhas de
zinco para os telhados. Enviou caminhões carregados de madeira ao bairro, e
metade da carga desapareceu. Tudo é propriedade do Estado. As pessoas se apoderam
de tudo. Um sistema de racionamento operando em modo reverso. AJUDAR NO
ROUBO DO CIMENTO FOI MEU PRIMEIRO GRANDE SUCESSO. POR MEIA HORA DE TRABALHO,
RECEBI UM PRATO IMENSO DE ARROZ COM FEIJÃO VERMELHO, ACOMPANHADO POR UMA BANANA
E UMA PORÇÃO DE PICADILLO --PELO MENOS 800 CALORIAS. SEGUNDA SEMANA A
segunda semana foi mais fácil. As duas pequenas prateleiras do apartamento
estavam bem abastecidas de arroz e feijão, algumas batatas doces compradas por
1,70 peso o quilo, e minha garrafa de uísque contrabandeado, ainda pela metade.
Eu tinha nove ovos, depois oito, e depois sete, ainda que a geladeira fora isso
estivesse vazia. Deixei de lado luxos como os sanduíches (ou sanduíche
--comprei só um, e a despesa ainda me causava pesadelos). NO DÉCIMO
DIA, constatei que me restavam 100 pesos. Como no caso dos ovos, eu
era capaz de imaginar uma lenta e cuidadosa redução ao longo dos próximos 20
dias, mas tanto meu orçamento quanto minha dieta podiam ser arruinados caso eu
tropeçasse e deixasse uma gema cair no chão. Tudo dependia de quanto o arroz
duraria. Já que só me restavam cinco pesos por dia para gastar, eu não poderia
mais fazer compras grandes durante a minha estadia. Aprendi a controlar o
apetite e a passar sem me deter pelas filas de cubanos que adquirem pequenas
bolas de farinha frita a um peso. MEU ÚNICO LUXO FOI UMA BARRA
DE MANTEIGA DE AMENDOIM ENDURECIDA, PRODUZIDA ARTESANALMENTE POR AGRICULTORES,
QUE COMPREI POR CINCO PESOS EM UM AGRO. Com cuidado, essa barra
de tamanho equivalente a seis colherinhas de amendoim moído rusticamente e
pesadamente açucarado podia durar até dois dias. É normal ver os campesinos
mais pobres mascando essas barras, que eles embrulham cuidadosamente e guardam
depois de cada mordida. TRABALHO Outra coisa que eu tinha em comum com a
maioria dos cubanos é que absolutamente não trabalhei durante meus 30 dias. O
que significa que trabalhei muito e com grande frequência em meus projetos
pessoais. Carreguei cimento e removi cascalho por dinheiro, e escrevi bastante,
mas não se tratava de trabalho para o Estado, o tipo de trabalho computado nas
contas da Cuba oficial, onde mais de 90% das pessoas são funcionários do
Estado. Por que procurar emprego? Ninguém leva seu trabalho a sério, e a piada
mais velha de Havana continua a ser a melhor: "Eles fingem que nos pagam,
nós fingimos que trabalhamos". Os cubanos que ignoram convocações oficiais
ao trabalho podem ser acusados de serem "elementos perigosos", um
delito vago e passível de pena de até quatro anos de prisão. Ser um elemento
perigoso é um "pré-crime", disse Elizardo Sánchez --como se a polícia
tentasse cortar pela raiz as atitudes negativas antes que a pessoa tenha a
oportunidade de cometer um crime real. Há campanhas regulares para deter os
jovens que tentem evitar o trabalho estatal e o serviço militar, e este ano
elas se provaram especialmente vigorosas, um sinal de nervosismo. "NÃO É
FÁCIL SE ESCONDER DO GOVERNO", disse Sánchez. "OS
MENINOS PRECISAM SE REGISTRAR PARA FUTURO SERVIÇO MILITAR AOS 15 ANOS DE IDADE.
ÀS VEZES TENTAM MUDAR DE ENDEREÇO, MAS NÃO FUNCIONA. PARA UM JOVEM, É DIFÍCIL
PERMANECER ESCONDIDO. CUBA É UMA SOCIEDADE DE ARQUIVOS. DA PRIMEIRA SÉRIE EM
DIANTE, A POLÍCIA PARA CRIANÇAS NAS RUAS E LHES SOLICITA DOCUMENTOS DE
IDENTIDADE. PODEM FAZER CONTATO PELO RÁDIO E PEGAR A FICHA COMPLETA". CARAMELO Com
isso, eu tinha tempo de sobra. Naquela noite, ouvi música ao longe e encontrei
uma série de palcos montados ao longo da rua 23, e assisti a um bom show de
rock sob a luz da lua. Sentei-me no pedestal de alguma obscuridade heróica
--uma mãe estendo os braços para entregar o filho à batalha. Depois de algum
tempo, uma menininha de sete ou oito anos se aproximou e sentou perto de mim.
"Caramelo?", disse. (Doce?) "Não tenho".
"Nenhum?" "Nada". "Mas nenhum, mesmo?"
"Não". Então vieram as perguntas usuais: de onde você vem, onde mora,
por que está por aqui. E de novo: "Não tem dinheiro nenhum?"
"Não tenho". "Mas os estrangeiros sempre têm muito
dinheiro". "Sim, tenho dinheiro no meu pais. Aqui, vivo como se fosse
cubano". "ME DÁ UM PESO?" Não posso. A verdade, pequena, é que
estou no meio de um jogo. Estou fingindo ser pobre. Estou vivendo como seus
pais, por algum tempo. Não como há nove horas. Nos 11 últimos dias, comi 12 mil
calorias a menos do que minha dieta normal disporia. Meus dentes doem muito.
Ou, traduzido para o espanhol: "Não". MIL CALORIAS Por fim, voltei
para casa, onde uma celebração muito desejada me aguardava. Era sexta-feira, a
noite da semana em que eu comeria carne. Ainda que o dia até aquele momento tivesse
sido um de meus piores --apenas mil calorias até as 21h, e longas caminhadas-,
estava determinado a compensar tudo aquilo com um banquete. Preparei arroz, e
cozinhei uma batata doce na panela de pressão --que os cubanos apelidam de "AQUELA
QUE FIDEL NOS DEU", porque foram as panelas distribuídas como parte de um esquema
de economia de energia. Também tomei uma preciosa dose de uísque com gelo (250
calorias), tudo isso acompanhado por arroz e feijão que sobraram do dia
anterior. Por necessidade, servi apenas porções pequenas. Do refrigerador,
tirei minha proteína: um dos quatro filés de frango empanados a que tinha
direito para o mês. Acendi o fogão com cuidado, e fritei o filé até que sua
crosta ficasse escura, ainda que ao servi-lo o interior estivesse frio e úmido.
Não era carne de frango. Não era nem mesmo a "mistura de frango" que
a embalagem dizia ser. Os principais ingredientes mencionados eram pasta de
soja e trigo. Uma inspeção mais cuidadosa revelou que o teor de carne de frango
era zero. Eu estava comendo uma esponja empanada, com apenas 180 calorias. Ah,
meu reino por um McNugget. Por fim, cruzei a barreira das duas mil calorias
pela primeira vez em 10 dias --por pouco. Descontando os muitos quilômetros de
caminhadas e alguns minutos de dança, retornei à familiar referência das 1,7
mil calorias. Mas pelo menos estava de barriga cheia quando fui dormir. Ou era
o que eu imaginava. Depois de duas horas de sono, acordei com insônia, a
companheira da fome. Fiquei na cama da uma da manhã até o alvorecer, cinco horas
de briga contra mosquitos e de leitura de Victor Hugo e Alexandre Dumas. Ainda
assim, não é possível comparar minha situação a uma fome real. Como aponta
Hugo: "Por trás da arte de viver com muito pouco, está a arte de viver com
nada". Mergulhei nos milhares de páginas da França do século 19, em dois
escritores que descrevem revoluções, marchas forçadas e fome real. "Quando
a pessoa não comeu", escreve Hugo, "a sensação é muito estranha...
Ela rumina aquela coisa inexprimível, a amargura. Uma coisa horrível, QUE ENVOLVE
DIAS SEM PÃO E NOITES SEM SONO". E assim chegou a aurora,
minha 12ª. TELEFONEMA
Repentinamente, sorte e felicidade. Na noite seguinte, eu estava sentado à
porta do meu edifício, observando a rua, quando meu vizinho se aproximou vindo
do beco, trazendo um telefone. Um telefonema. Para mim. Era a amiga de um
amigo, em visita a Cuba com seu namorado. Os dois eram claramente
norte-americanos, do tipo "que bom que nós existimos", e eu
imediatamente farejei a possibilidade de uma refeição grátis. O casal havia
chegado a Havana e, porque não conheciam a cidade e nem falavam espanhol, me
convidaram para jantar. Saímos a passeio pelas ruas de Vedado, e eu evitei
cuidadosamente pedir comida, tentando parecer estóico. Jantamos em um
restaurante para turistas, e pela primeira vez desde minha chegada comi carne
de porco. Na tarde seguinte, voltamos a nos encontrar. Eu os levei a uma
cerimônia de iniciação na Santería, uma hora de tambores e calor sufocante em
um pequeno apartamento, durante a qual pelo menos três pessoas foram possuídas
por espíritos. Depois, recebi novo convite para jantar em um restaurante
elegante. Mais carne de porco! Os cubanos preparam lechón, um inocente
leitãozinho, marinado em um molho de alho e laranjas azedas, e cozinham o prato
por muitas horas; a carne fica macia a ponto de poder ser comida com a colher.
Para acompanhar a reluzente proteína e gordura, serviram-nos arroz com feijão,
exatamente aquilo que eu comia duas vezes por dia em meu apartamento. A porção
servida equivalia a quatro refeições para mim, expliquei. "Desculpe",
disse o namorado enquanto se servia, "mas vou comer sua
quinta-feira". Como as centenas de cubanos a quem servi de anfitrião ao
longo dos anos, tive de trabalhar pela minha comida. Falei sobre a história dos
cultos afrocubanos. Sobre a história de edifícios que nunca visto. Sobre a ilha
vista pelos olhos de Capone, Lansky, Churchill e Hemingway. Fiz piadas sobre o
socialismo. Discorri sobre a arte do racionamento. O segredo do daiquiri. Nas
duas noites, comi carne de porco, acompanhada por arroz e feijão e um par de
coquetéis. A despeito da carne, não registrei grande avanço nas calorias
consumidas --apenas 2,1 mil ao dia, ante minhas 1,7 mil usuais. Mas as
refeições ajudaram meu bem estar psicológico. Eu havia conseguido uma folga,
como que um feriado, depois da ansiedade causada pela redução de meu estoque de
alimentos básicos. LIXO Na manhã seguinte,
encontrei uma mulher vasculhando meu lixo. Ela estava em busca de garrafas de
vidro ou qualquer outra coisa de valor. Dei-lhe minhas calças de zíper
enguiçado. Ela tinha 84 anos, a idade de minha mãe, e vivia com uma
aposentadoria de 212 pesos ao mês, ou pouco mais de US$ 8. Vasculhava latas de
lixo em busca de produtos aproveitáveis --para fúria de minha faxineira, que
considerava ter direito ao conteúdo das latas- e trabalhava como colera, ou
profissional de espera em filas, para cinco famílias moradoras do quarteirão.
Ela levava suas cadernetas de racionamento à bodega, retirava e entregava os
mantimentos a elas, e por esse trabalho recebia cerca de 133 pesos. Estava
usando uma bombinha de asma que custava 20 pesos, ou cerca de 75 centavos de
dólar, mas apenas a primeira dose era comprada a esse preço; se a pessoa
precisasse de mais de uma ao mês, teria de recorrer ao mercado negro, pagando
alguns dólares por unidade. PARA AGRADECER PELAS MINHAS
CALÇAS, ELA INFORMOU QUE A PADARIA "LIVRE" TINHA ESTOQUE. ESTAVA
FALANDO DA PADARIA NÃO RACIONADA, ONDE QUALQUER PESSOA ESTÁ AUTORIZADA A
COMPRAR PÃO. O PREÇO É QUATRO VEZES MAIS ALTO QUE O DAS PADARIAS RACIONADAS, MAS
HÁ MUITO MAIS PÃO. Apanhei uma sacola plástica e caminhei oito quarteirões
(passando por três padarias racionadas que estavam fechadas) para comprar um
pão inteiro por 10 pesos. No meu caminho de volta, uma mulher que ia na direção
oposta perguntou: "A padaria tem pão?", e acelerou o passo, diante da
resposta. Depois, quando passei por dois homens que jogavam xadrez sob uma
figueira, um deles fez a mesma pergunta. "SIM, HÁ PÃO", respondi. Os
dois guardaram as peças, enrolaram o tabuleiro e se foram na direção da
padaria. Meu café da manhã havia sido uma pequena e dura banana da terra,
comprada de um homem em um beco. Com café e açúcar, ela representava menos de
200 calorias. O almoço consistiu de um ovo acompanhado por duas fatias do pão
que eu tinha comprado, ou seja, mais 380 calorias. Eu tinha US$ 3 na carteira,
e mais 17 dias para sobreviver. Um erro catastrófico. Andei a tarde toda, e o
teor de açúcar no meu sangue estava baixo. QUANDO PASSEI POR UM BECO
CURTO NO QUAL HAVIA UM CARTAZ COM A PALAVRA "PIZZA", PAREI E PEDI
UMA. A PIZZA BÁSICA --UM DISCO DE 15 CENTÍMETROS DE MASSA TENUAMENTE RECOBERTO
DE KETCHUP E UM POUQUINHO DE QUEIJO- CUSTA 10 PESOS, MAS CEDI A UM IMPULSO E
PEDI UMA ESPECIAL, COM CHORIZO. ASSIM, MEU LANCHE CUSTARIA 15 PESOS. NO MEU
APARTAMENTO, COLOQUEI A PIZZA NA MESA E A CONTEMPLEI, HORRORIZADO. OS 15 PESOS
EQUIVALIAM A HORRÍVEIS US$ 0,60, E ESTOURARIAM MEU ORÇAMENTO. Pelo
mesmo montante, eu poderia ter comprado quilos de arroz. Contemplando a
minúscula pizza, menor que uma fatia de pizza norte-americana, comecei a tremer
e tive de me sentar. De repente, comecei a chorar. Por bons 10 minutos, solucei
e me amaldiçoei. Imbecil! Tolo! Idiota! TENSÃO
Eu havia gasto um quinto do dinheiro que me restava por impulso,
e agora só tinha 64 pesos para viver pelos próximos 17 dias. O que me
aconteceria? O que eu comeria quando meus feijões, cujo estoque já estava
baixo, acabassem? E se eu cometesse outro erro? E se fosse roubado? Como
chegaria ao aeroporto no último dia se não tivesse nem mesmo alguns centavos
para pagar o ônibus? Chorar libera não só tensão e medo como endorfinas. A
pizza e eu esfriamos juntos. Comi com cuidado, usando garfo e faca, e bebendo
água gelada. A "refeição" durou menos de dois minutos. Foi o ponto
mais baixo do meu mês. Algum tempo depois, bateram à minha porta. A filha de um
dos vizinhos estava do lado de fora. "Patri!", ela gritou.
"Patri!" Abri a porta e ela me entregou uma caixa de sapatos. Era
pesada, e estava envolta em fita adesiva. Um visitante havia passado por lá --OUTRO
NORTE-AMERICANO QUE ESTAVA EM VISITA A CUBA-, e quando a abri encontrei um
bilhete da minha mulher e do meu filho pequeno, e três dúzias de biscoitos de
chá feitos em casa. Comi 10 deles. Da emboscada à fuga. Das lágrimas à paz. Da
danação à alegria. Racionei o restante dos biscoitos: cinco ao dia até que o
estoque se reduzisse, e depois dois ao dia; por fim, desmontei a caixa com uma
faca e comi as migalhas que encontrei nos cantos. ESPELHO Uma
vez por dia, eu cedia à vaidade e me olhava no espelho sem camisa, vendo um
homem que não contemplava há 15 anos. Eu havia perdido primeiro dois, depois
três, por fim quatro quilos. Mas estômago e mente se ajustaram com facilidade
assustadora. Minha primeira semana havia sido dolorosa e acompanhada por uma
fome mortal. A segunda, dolorosa e apenas moderadamente faminta. Agora, na
terceira, ainda que estivesse comendo menos que nunca, me sentia tranquilo,
tanto física quanto mentalmente. O dia havia sido o pior da viagem até aquele
momento, com apenas 1,2 mil calorias consumidas, o equivalente ao que os
prisioneiros norte-americanos recebiam dos japoneses durante a Segunda Guerra
Mundial. Voltei à casa dos meus amigos ladrões de cimento e, depois de uma longa
espera, a mulher me cozinhou um jantar generoso, rolando de rir da minha "EXPERIÊNCIA". Ela
fritou (em óleo roubado de uma escola) uma porção de carne de frango moída
(comprada de um amigo que a roubara), e serviu com arroz "FEIO" da
ração e uma pequena beterraba. Depois da refeição, ela até me fez gemada, mas
em porção cubana --um golinho, em uma xícara pequena de café. Também comi
algumas colheradas de papaia (um peso a porção, em um mercado barato que ela
recomendou), cozido com xarope de açúcar. "É impossível", ela disse,
sobre minha tentativa de ser oficialmente cubano. Para sobreviver, todo mundo
precisa de "algo extra", alguma renda excluída do sistema. O marido
dela alugava um quarto para um turista sexual norueguês. A vizinha vendia
almoços a trabalhadores de uma empresa cujo refeitório fora fechado
recentemente. A mãe dela caminhava pelas ruas com uma garrafa térmica e xícara,
vendendo cafezinhos. Uma vizinha na rua ao lado roubava óleo de cozinha e
revendia por 20 pesos a garrafa de meio litro. Outra vizinha roubava carne de
frango e a vendia por 33 pesos o quilo. ("BOA QUALIDADE, PREÇO
MUITO BOM, VOCÊ DEVIA COMPRAR", ELA ACONSELHOU.) A
refeição que ela serviu foi a única que comi naquela dia, e as calorias
consumidas foram compensadas por uma espantosa caminhada não através de Havana
mas em torno da cidade, um circuito extenso pelas ruas carcomidas, passando por
grandes hotéis, casas encardidas, pessoas dormindo sem teto e sentadas em
caixotes, sem descanso, as horas da manhã, tarde e noitinha girando, pelas
largas avenidas e becos estreitos, passando por Plaza, Vedado, Centro, Velha
Havana e chegando a Cerro antes de voltar a Plaza de novo, três, seis, 10, 13
quilômetros, passando pela estação rodoviária, estádio de futebol, os sapatos
furados de tanto andar, até que voltei para dormir. Meus pés estavam doloridos.
Mas meu estômago não tinha queixas. Eu costumava dizer que, em Cuba, 10% de
tudo era roubado, para revenda ou reaproveitamento. Agora creio que a proporção
real seja de 50%. O crime é o sistema. Na calçada diante da minha loja de
produtos racionados, um dia, vi um adolescente com cabelo cortado em estilo
punk, sentado em seu reluzente Mitsubishi Lancer, de motor ligado, e brincando
com o que achei ser um iPhone. "Não é um iPhone", ele me corrigiu.
"É um iPod Touch". O aparelho é vendido por US$ 200, ou 5,3 mil
pesos. Algumas pessoas têm dinheiro, mesmo aqui. A única certeza é a de que não
ganham esse dinheiro de nenhuma maneira legítima. Caminhei até o amplo hotel
Riviera, cujo salão de jogos de azar foi fechado devido à nacionalização apenas
um ano depois de inaugurado. (O proprietário, Meyer Lanski, disse, famosamente,
que "tive azar nos dados".) PESEI-ME NA BALANÇA DA
ACADEMIA DE GINÁSTICA: 90 QUILOS. EM 18 DIAS, EU HAVIA PERDIDO QUASE CINCO
QUILOS, UM RITMO DE REDUÇÃO DE PESO QUE TERIA RESULTADO EM HOSPITALIZAÇÃO NOS
ESTADOS UNIDOS. A caminho de casa, uma mulher perguntou onde passava o ônibus
P2. Atrapalhei-me para responder. "Ah, achei que você fosse cubano",
ela disse. Mude de peso, mude de nacionalidade. Ri de seu engano e continuei
andando, mas não demorou um minuto para que ela me seguisse. "Ei, me leve
para almoçar", ela disse. "Onde você quiser". Fiz que não com a
cabeça. "Almoço", ela disse, enquanto eu me afastava. "Jantar.
Como preferir". Em casa, abri a geladeira e contei os cinco ovos que me
restavam. Como a mulher em busca do P2, eu havia me tornado direto. Caminhei
três quilômetros até Cerro, um bairro perigoso. Passei por um beco no qual
restos enferrujados de caminhões repousavam, por um estádio esportivo derruído,
por um parque de vegetação descuidada, por um bosque, e cheguei à porta de
entrada do Ministério do Interior. É o famoso edifício com uma estátua gigante
de Che Guevara. Dois soldados de boinas vermelhas estavam de guarda. O edifício
do Minint costuma ser fotografado o tempo todo, devido à escultura de Che que o
tornou famoso, mas ninguém quer entrar. Ignorei os guardas e continuei
caminhando pelo asfalto rachado da imensa Plaza da Revolución. Do lado oposto,
caminhando com cuidado, passei pela entrada de um edifício baixo mas colossal,
posicionado ao final de uma larga esplanada. Era o Conselho de Estado, o núcleo
do sistema revolucionário; nele, Raúl Castro comanda o trabalho dos principais
funcionários cubanos. Soldados das forças especiais armados de pistolas e
cassetetes protegem a entrada; o governo se sente seguro a ponto de ter apenas
um par de pistolas me separando de Raúl. Caminhando a esmo, e ocasionalmente em
círculos, passei por Cerro e outros bairros até encontrar a casa de Oswaldo
Payá, um dos mais importantes dissidentes de Cuba. Falamos de política,
cultura, neoliberalismo e direitos humanos, mas o que me chamou a atenção foi
sua situação econômica pessoal. "MEU SALÁRIO É DE 495
PESOS POR MÊS", DISSE. "ISSO EQUIVALE A CERCA DE 10 REFEIÇÕES PARA
QUATRO OU CINCO PESSOAS. OS SALÁRIOS NÃO COBREM UM QUINTO DE NOSSAS
NECESSIDADES ALIMENTÍCIAS. UM SANDUÍCHE DE 10 PESOS E UM REFRIGERANTE DE UM
PESO CONSOMEM METADE DO MEU SALÁRIO DIÁRIO. SE SOMARMOS A DESPESA DE IR AO
TRABALHO E VOLTAR PARA CASA, E OS MEUS TRÊS FILHOS QUE ESTÃO NA ESCOLA,
PRECISAMOS DE 10 A 12 PESOS POR DIA PARA TRANSPORTE --OU SEJA, 50% A 60% DA
RENDA FAMILIAR TOTAL". Ele sobrevive graças a
um irmão que vive na Espanha e envia dinheiro. "O paradoxo é que os
trabalhadores são as pessoas mais pobres de Cuba. Vivemos todos pior que o
sujeito que vende cachorro quente no posto de gasolina da esquina" (uma
empresa autorizada a vender em moeda forte). A maioria das pessoas não tem CUC,
e voltam para casa famintas a cada noite. "Não digo que tudo em Cuba seja
ruim, ou terrível. Temos esquemas de distribuição para alimentar os pobres,
para conceder benefícios. Mas essa é outra forma de dominação, mantendo as
pessoas pobres para sempre. Se minhas mãos estivessem livres, eu abriria um
negócio e me sustentaria sozinho". Perguntei-lhe onde alguém poderia
conseguir dinheiro para um iPod Touch ou qualquer das outras engenhocas,
produtos de luxo, carros moderno, aparelhos de som e roupas elegantes que são
cada vez mais comuns em Cuba. "Viver de salário equivale a ser
pobre", disse. "TODOS PRECISAM ROUBAR O SISTEMA PARA SOBREVIVER. É A CORRUPÇÃO
TOLERADA DA SOBREVIVÊNCIA". Uma minúscula classe
média emergiu: "Empresários, quase todos antigos funcionários do governo,
pessoas que operam restaurantes. São todos ligados ao regime. A maioria
ex-militares ou funcionários do Ministério do Exterior, e assim por diante.
Pessoas bem conectadas. Estão dentro do sistema. São intocáveis". E existe
um terceiro grupo, incrivelmente pequeno e "indescritivelmente"
próspero, dentro da liderança, "com casas grandes, viagens ao exterior,
tudo. O povo cubano sabe que esse grupo existe, mas ninguém jamais os vê, não
há como". Ao longo de uma hora de conversa, sua mulher, Ofelia, empregada
doméstica e também ativista dos direitos humanos, me serviu um copo de suco de
abacaxi. Quando o assunto estava se esgotando, Oswaldo insistiu que eu voltasse
para uma refeição e um mojito, "QUANDO QUISER". Não
saí da cadeira. A conversa sobre futuras refeições me deixou com água na boca.
Ofelia percebeu, e logo ouvi o ruído de fritura na cozinha. Comemos sopa de
tomate, arroz e lentilhas amarelas. Ela serviu uma porção de proteína, uma
mistura cinzenta que pensei ser picadillo do governo porque tinha gosto de soja
e restos de alguma coisa que um dia tivesse sido um animal. Mas Ofelia tirou a
embalagem da cesta de lixo. Era carne de peru "separada
mecanicamente" produzida pela Cargill, dos Estados Unidos, parte das
centenas de milhões de dólares em produtos agrícolas vendidos a Cuba a cada ano
sob uma cláusula de isenção do embargo. Era quase intragável, mesmo com a fome
que eu sentia, mas Ofelia tinha um sorriso largo nos lábios. "Muito melhor
que o peru que comprávamos antes", disse. Quando eu estava saindo, Oswaldo
tentou me dar 10 pesos. "Qualquer cubano faria isso por você", disse.
Ele me aconselhou a gastar o dinheiro em comida, mas recusei, devolvendo as
notas. Não podia aceitar dinheiro de uma fonte, ainda que meus escrúpulos não
se estendessem a recusar uma refeição. Ele insistiu. No final, para evitar a
caminhada de volta à minha casa, aceitei uma moeda de um peso para o ônibus.
Oswaldo caminhou comigo pelas ruas de seu bairro perigoso, repletas de
adolescentes que nos encaravam, e me levou ao ponto de ônibus. "USE
CALÇAS COMPRIDAS", FOI SEU CONSELHO FINAL. SÓ TURISTAS CIRCULAM DE SHORTS. Eu
vinha há mais de uma semana me esquivando às atenções de uma jovem que
caminhava pelas ruas próximas de meu apartamento. Era um exemplo clássico da
economia cubana em ação: calças justíssimas, correntes douradas, sombra azul
nos olhos, sandálias com salto plataforma e unhas postiças de acrílico pintadas
nas cores da bandeira cubana. "Psst", ela dizia ao passar, chamando
minha atenção para esses atributos. Eu muitas vezes costumava me sentar na
escadaria do meu prédio, a fim de aliviar a sensação de estar aprisionado no
pequeno apartamento. Ela me olhava pelo portão de ferro, ao passar, e me
chamava. Psst. Eu resistia ao apelo. Mas a jovem, como muitas prostitutas cubanas
com quem conversei, era uma mulher charmosa e inteligente lutando para
sobreviver. Conversamos uma vez, e voltamos a fazê-lo dias mais tarde. Nossa
terceira conversa foi longa. Ela tentava o tempo todo ser convidada a entrar no
meu apartamento --eu tinha fogo para seu cigarro? Um cafezinho? Uma cerveja ou
refrigerante?- e eu nem cedia e nem recusava, porque as histórias dela me
divertiam. Em dado momento, o som de um celular surgiu de seu decote. Ela atendeu,
e travou uma conversação tendenciosa, em inglês. Quando desligou, ela disse:
"Ele quer comer meu rabo". Cogerme em el culo. Os cubanos,
especialmente as prostitutas, não fazem rodeios quanto a sexo. Ou raça.
"Os negros sempre querem sexo anal", ela continuou. "Não gosto
de negros, mesmo que me considere negra, e minha irmã é negra, mas acho que os
negros cheiram mal. O sujeito tem muito dinheiro. É um homem importante nas
ilhas Cayman, e rico de verdade. Ele me ofereceu US$ 150, e eu recusei. Agora
disse que quer me pagar US$ 300 só por um jantar". "Duvido
muito", eu disse. "Pois é. Sempre digo a ele para ligar para minha
prima. Ela adora negros". Todas as nossas conversas tanto começavam quanto
se encerravam com uma proposta. Porque, ao longo de uma semana, eu havia
recusado repetidamente os seus convites, ela disse: "EU
ACHEI QUE VOCÊ FOSSE PATO". O quê? "Você sabe,
maricón. Um gay. Homossexual". Ela é enfermeira, tem 24 anos, vive em
Holguín. Para conseguir mais tempo de férias, trabalha turnos de 12 horas, e
depois, a cada quatro ou seis meses, vai a Havana para um longo intervalo
"no qual me dedico a isso", disse. Em um raro momento de eufemismo,
se definiu como dama de acompañamiento. "A maioria das meninas tem
cafetões, mas eu não; preciso me defender sozinha". Além do celular, seu
decote oculta uma pequena faca serrilhada, cuja lâmina ela estendeu e exibiu.
"Você sabe por que fazemos isso", disse, "não é? É a única
maneira de sobreviver. Tenho uma filha e a amo muito. É uma menina preciosa.
Sinto muito sua falta. É por ela que faço isso. Que tal me dar US$ 100 e a
gente sobe agora?" (Ela mais tarde me ofereceria o "preço
cubano" de US$ 50.) Eu disse a ela que não tinha dinheiro. Expliquei o que
estava fazendo. A ração. O salário. Os cinco quilos que eu tinha perdido.
"Não tenho nem um peso", disse. Ela pediu uma caneta, anotou seu
telefone e me entregou o papel. Depois, tirou de um dos bolsos minúsculos de
sua calça justa uma moeda de um peso, e me entregou. "Para você me
telefonar", disse. FOI MAIS UM DIA TERRÍVEL NO QUE TANGE À COMIDA, MEU PIOR ATÉ AQUELE
MOMENTO. DO ALVORECER À MEIA-NOITE, COMI ARROZ, FEIJÃO E AÇÚCAR EM VALOR
NUTRITIVO DE POUCO MAIS DE MIL CALORIAS. Acordei às três da manhã
seguinte e terminei o arroz. Só me restava um pouco de feijão, duas batatas
doces, algumas bananas da terra mirradas, três ovos e um quarto de repolho.
Faltavam nove dias. Fui à loja de produtos racionados, procurei Jesús e comprei
café, meio quilo de arroz e um pouco de pão --tudo a preços cubanos, um total de
14 pesos, ou cerca de US$ 0,60. Com isso meu dinheiro acabou. Mas essas sobras
de comida, a generosidade de diversos cubanos e meu estômago contraído para o
tamanho de uma noz garantiram que fosse o bastante. Eu sabia que cumpriria meu
plano até o fim. No dia seguinte, fui a pé até a casa de Elizardo Sánchez, o
ativista dos direitos humanos. Setenta minutos de caminhada para ir e 70 para
voltar. "Tudo está bem, agora", eu lhe disse, delirando com a falta
de açúcar no sangue. "ATÉ PROSTITUTAS ESTÃO ME DANDO DINHEIRO". Passei
uma hora em sua casa. Ele me ofereceu um copo de água. Por fim chegou o grande
dia da fuga. Na metade de fevereiro, caminhei pela última vez até o Riviera e
me pesei na academia. Estava mais de cinco quilos abaixo do peso que tinha ao
chegar. Mais de cinco quilos perdidos em 30 dias. Eu tinha consumido 40 mil
calorias a menos do que estava acostumado. A esse ritmo, eu estaria magro como
um cubano por volta do segundo trimestre; e morto antes do final do ano.
Concluí a estadia com algumas refeições minúsculas --acabei com o arroz feio,
comi a última batata doce e um quarto de repolho. No dia anterior à partida,
recorri à reserva para emergências e comi os palitos de gergelim do avião (60
calorias), acompanhados pela lata de suco de frutas contrabandeada das Bahamas
(180). O sabor do líquido vermelho foi um choque: amargo por conta do ácido
ascórbico e repleto de açúcar, a fim de imitar o sabor de um suco real. Foi
como beber plástico. FIM Meus gastos totais com comida foram
de US$ 15,08 ao longo do mês. Ao final, eu tinha lido nove livros, dois dos
quais com mais de mil páginas, e escrito boa parte deste artigo. Vivi com o
salário de um intelectual cubano e, de fato, sempre escrevo melhor, ou ao menos
mais rápido, se estou sem grana. Minha última manhã: sem desjejum, para
complementar o jantar que não tive na noite anterior. Usei a moeda que ganhei
de uma prostituta para apanhar um ônibus até perto do aeroporto. Tive de
caminhar os 45 minutos finais até o terminal; quase desmaiei no caminho. Houve
um momento tragicômico, no qual homens uniformizados me tiraram da fila do
detector de metais porque um agente da imigração achou que eu tinha excedido os
30 dias de permanência do meu visto. Foi preciso três pessoas, contando
repetidamente nos dedos, para provar que aquele era o 30º dia. Jantei e almocei
nas Bahamas e engordei quase dois quilos. De volta aos EUA, ganhei mais três
quilos antes que o mês acabasse. Estava de volta à minha nacionalidade --e ao
meu peso.