AP 470: "NÃO CABEM EMBARGOS INFRINGENTES
NO SUPREMO"
Por Lenio Luiz
Streck( procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito)
PERGUNTAS E RESPOSTAS
Não há respostas antes das perguntas. Trata-se de uma máxima
da hermenêutica. Por isso, a resposta antecipada acerca do cabimento dos
embargos infringentes em ação penal originária no âmbito do Supremo Tribunal
Federal parecia esgotar a matéria. Assim, quando a Folha de São Paulo trouxe a
afirmação de que, em caso de condenação dos acusados na AP 470 (mensalão),
estes ingressarão com o Recurso denominado “EMBARGOS INFRINGENTES”, com base no Regimento Interno do STF, por pouco não sucumbi
à tese. Desse modo, segui outra máxima da hermenêutica, que é a de desconfiar
de qualquer certeza. Não há jogo jogado. Se, como acredito, há sempre uma
resposta adequada a Constituição — o que implica dizer que há respostas mais
corretas que outras ou, até mesmo, uma correta e outra incorreta – a obrigação
é a de revolver o chão linguístico que sustenta uma determinada tradição e, a
partir dali, reconstruir a história institucional do instituto. Pretendo, neste
momento, (re)discutir os embargos infringentes. Com efeito, escrevi,
recentemente, no artigo O STF e o Pomo de Ouro
que é necessário que sejamos um tanto quanto ortodoxos em matéria
constitucional. E é exatamente por isso que trago à baila o debate acerca do
cabimento (ou não) dos EMBARGOS
INFRINGENTES no caso de
julgamento definitivo do STF como instância originária.
O RISTF
Corro para explicar. O RISTF, anterior a Constituição de
1988, estabelece, no artigo 333, o cabimento de embargos infringentes nos casos
de procedência de ação penal, desde que haja quatro votos favoráveis à tese
vencida. Em síntese, é o que diz o RISTF. Simples. Fácil de entender. Mas,
então, qual é o problema? Há algo de intrigante nisso? Aparentemente, a questão
estaria resolvida pela posição que o STF assumiu no julgamento do (AI
727.503-AgR-ED-EDv-AgR-ED,assim ementado:
"Não se mostram suscetíveis de conhecimento os embargos
de divergência nos casos em que aquele que deles se utiliza descumpre a
determinação contida no art. 331 do RISTF. A utilização dos embargos de
divergência impõe que o embargante demonstre, cabalmente, a existência de
dissídio interpretativo, expondo, de modo fundamentado, as circunstâncias que
identificam ou que tornam assemelhados os casos em confronto, para fins de
verificação da relação de pertinência que deve necessariamente existir entre o
tema versado no acórdão embargado e a controvérsia veiculada nos paradigmas de
confronto. (...) O STF, sob a égide da Carta Política de 1969 (art. 119, § 3º,
c), dispunha de competência normativa primária para, em sede meramente
regimental, formular normas de direito processual concernentes ao processo e ao
julgamento dos feitos de sua competência originária ou recursal. Com a
superveniência da Constituição de 1988, operou-se a recepção de tais preceitos
regimentais, que passaram a ostentar força e eficácia de norma legal (RTJ
147/1010 – RTJ 151/278), revestindo-se, por isso mesmo, de plena legitimidade
constitucional a exigência de pertinente confronto analítico entre os acórdãos
postos em cotejo (RISTF, art. 331).” (AI 727.503-AgR-ED-EDv-AgR-ED, Rel. Min.
Celso de Mello, julgamento em 10-11-2011, Plenário, DJE de 6-12-2011.) No caso
objeto do referido AI 727.503 - AgR-ED-EDv-AgR-ED, disse o STF que as normas
regimentais de direito processual, produzidas sob a égide da Constituição
anterior (1967-1969), foram recepcionadas pela atual Constituição (Art. 96.
Compete privativamente: I - aos tribunais: a) eleger seus órgãos diretivos e
elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das
garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o
funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos). Pronto.
Isso encerraria a discussão. Afinal, o art. 333 do RISTF que estabelece o
“recurso” dos embargos infringentes, quando existirem quatro votos favoráveis
ao réu, valeria como norma processual.
TÃO SIMPLES, ASSIM?!?!?!
Penso, no entanto, que a questão não é tão singela. A decisão
do STF se referiu a um caso determinado. Não tratava de embargos infringentes
(art. 333 do RISTF). E a assertiva da recepção tem limites, porque deve ser
lida no sentido de que “essa recepção não se sustenta quando o legislador
pós-Constituição de 1988 estabelece legislação que trata a matéria de forma
diferente daquela tratada no Regimento Interno”. Caso contrário, o Regimento
Interno estaria blindado a qualquer alteração legislativa ou ainda se correria
o risco de conferir ao STF o mesmo poder legiferante que possui a União, uma
vez que ele estaria autorizado a legislar sobre matéria processual
contrariando, assim, o que dispõe o inc. I do art. 22 da CF. Aliás, esse
Acórdão do STF deve ser lido em conjunto com outros do mesmo Supremo. Por
exemplo, “O espaço normativo dos regimentos internos dos tribunais é expressão
da garantia constitucional de sua autonomia orgânico-administrativa (art. 96,
I, a, CF/1988), compreensiva da ‘independência na estruturação e funcionamento
de seus órgãos’.” (MS 28.447, Rel. Min. Dias Toffoli, julgamento em 25-8-2011,
Plenário, DJE de 23-11-2011.) Vide: ADI 1.152-MC, Rel. Min. Celso de Mello,
julgamento em 10-11-1994, Plenário, DJ de 3-2-1995.
AINDA:
“Com o advento da CF de 1988, delimitou-se, de forma mais
criteriosa, o campo de regulamentação das leis e o dos regimentos internos dos
tribunais, cabendo a estes últimos o respeito à reserva de lei federal para a
edição de regras de natureza processual (CF, art. 22, I), bem como às garantias
processuais das partes, ‘dispondo sobre a competência e o funcionamento dos
respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos’ (CF, art. 96, I, a). São
normas de direito processual as relativas às garantias do contraditório, do devido
processo legal, dos poderes, direitos e ônus que constituem a relação
processual, como também as normas que regulem os atos destinados a realizar a
causa finalis da jurisdição. (...) (ADI 2.970, Rel. Min. Ellen Gracie,
julgamento em 20-4-2006, Plenário, DJde 12-5-2006.)
OU, TALVEZ
“Em matéria processual prevalece a lei, no que tange ao
funcionamento dos tribunais o regimento interno prepondera. Constituição, art.
5º, LIV e LV, e 96, I, a. Relevância jurídica da questão: precedente do STF e
resolução do Senado Federal. Razoabilidade da suspensão cautelar de norma que
alterou a ordem dos julgamentos, que é deferida até o julgamento da ação
direta." (ADI 1.105-MC, Rel. Min. Paulo Brossard, julgamento em 3-8-1994,
Plenário, DJ de 27-4-2001.)
OU
“Portanto, em face da atual Carta Magna, os tribunais têm
amplo poder de dispor, em seus regimentos internos, sobre a competência de seus
órgãos jurisdicionais, desde que respeitadas as regras de processo e os
direitos processuais das partes." (HC 74.190, Rel. Min. Moreira Alves,
julgamento em 15-10-1996, Primeira Turma, DJ de 7-3-1997.)
VEJA-SE: DESDE QUE
RESPEITADAS AS REGRAS DE PROCESSO...!
Não se interpreta por partes. Em termos hermenêuticos, vai-se
do todo para a parte e da parte para o todo, formando-se, assim, o
hermeneutische Zirkel (círculo hermenêutico). Texto é contexto. O RISTF só
existe no contexto do campo significativo que emana da Constituição. Nesse
sentido, parece que a pá de cal na discussão pode estar na quase desconhecida
ADI 1289, pela qual o STF entendeu o cabimento de embargos infringentes em ação
direta de inconstitucionalidade.
RISTF V. LEIS
Qual era o case nessa ADI 1289? Tratava-se de uma ADI
ajuizada antes da entrada em vigor da Lei 9.868/99. Mas qual é a importância
disso? Ai é que está. O STF (ADI 1591) admitia a interposição de embargos
infringentes em ADI até o advento da Lei 9.868. Como essa lei não previu a
hipótese de embargos infringentes, o STF passou a não mais os admitir. Só
admitiu embargos infringentes – como é o caso da ADI 1289 – nas hipóteses que diziam
respeito ao espaço temporal anterior à Lei 9.868. Assim, é possível dizer que,
nesse contexto, se o STF considerou não recepcionado (ou revogado) o RI (no
caso, o art. 331) pelo advento de Lei que não previu esse recurso (a Lei
9.868), parece absolutamente razoável e adequado hermeneuticamente concluir que
o advento da Lei 8.038, na especificidade, revogou o art. 333 do RISTF, que
trata de embargos infringentes em ação penal originária (na verdade, o art. 333
não trata de ação penal originária; trata a matéria de embargos infringentes de
forma genérica, mais uma razão, portanto, para a primazia da Lei 8.038, que é
lei específica). É o que se pode denominar de força pervasiva do comando
constitucional previsto no art. 96, I, a, na sua combinação com o art. 22 da
CF. Veja-se: um limita o outro. Se é verdade que se pode afirmar – como fez o
STF – que normas processuais previstas em regimento interno são recepcionadas
pela CF/88, também é verdade que qualquer norma processual desse jaez não
resiste a um comando normativo infraconstitucional originário da Constituição
de 1988. Isto porque, a partir da CF/88, um regimento interno não pode
contemplar matéria estritamente processual. Ora, a Lei 8.038 foi elaborada
exatamente para regular o processo das ações penais originárias. Logo, não há
como sustentar, hermeneuticamente, a sobrevivência de um dispositivo do RISTF
que trata da matéria de modo diferente.
EASY OU HARD CASE?!?!?!
Percebe-se, desse modo, que não estamos em face de um easy
case, embora, na esteira de Dworkin e Castanheira Neves, não acredite na
dicotomia easy-hard cases. Na verdade, o que determina a complexidade do caso é
a relação circular que se estabelece entre a situação hermenêutica do
intérprete e as circunstâncias que determinam o caso. Trata-se de uma questão
de fusão de horizontes (Gadamer). Um dado caso pode parecer fácil porque o
intérprete incauto se deixa levar logo pelos primeiros projetos de sentido que
se instalam no processo interpretativo. Não há suspensão de prejuízos tampouco um
ajuste hermenêutico com a coisa mesma (die Sache selbst). Assim, as diversas
nuances e cores que conformam o caso escapam à compreensão d interprete e seu
projeto interpretativo, inevitavelmente, fracassa. Por outro lado, por razões
similares, um determinado caso pode se mostrar difícil em face da precariedade
da situação hermenêutica do intérprete. Sigo. Nenhum dos acórdãos do STF até
hoje enfrentou questão envolvendo diretamente a superveniência da Lei nº
8.038/1990, que, efetivamente – e isso parece incontestável -, estabeleceu a
processualística aplicável às ações penais originárias. E, acreditem, nem de
longe estabeleceu o “recurso” dos embargos infringentes. Isto é, não há
julgamento tratando da antinomia RISTF-Lei 8.038. No máximo, o que existe é menção,
em obiter dictum, de que, em determinado caso, não seria caso de embargos
infringentes (v.g., SS 79.788-ED, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 1.2.2002). Portanto,
não estaríamos, neste caso, em face de um impasse hermenêutico? Indago: embora
o STF diga – em um determinado caso que não é similar ao que estamos tratando -
que as normas processuais estão recepcionadas, essa posição se manterá quando
se colocar a pergunta: pode o RISTF sobreviver a uma Lei Ordinária, que, na sua
especialidade (leia-se essa palavra no sentido técnico), veio para regulamentar
a Constituição de 1988?
O PAPEL DO RISTF
Qual é o papel do RI do STF? Pode ele dizer mais do que a lei
que regulamenta a Constituição? Pode um dispositivo do RI instituir um “recurso
processual” que a lei ignorou/desconheceu? Sabe-se que o RI é “lei material”.
Entretanto, não pode o RI tratar especificamente de “processo”.[1] Caso
contrário, não precisaríamos sequer de uma reforma do CPC ou do CPP: o STF
poderia tratar de tudo isso em seu Regimento Interno... Em outros termos,
tornaríamos sem eficácia o inciso I do art. 22 da CF. MAIS: é possível admitir
a sobrevivência (recepção?) de um dispositivo do Regimento Interno que vem do
ancién régime, destinado, exatamente, a proporcionar, em “casos de então”, um reexame
da matéria pelos mesmos Ministros, quando, por exemplo, era possível a
convocação de membros do Tribunal Federal de Recursos? Hoje qualquer convocação
de membros de outras Cortes é vedada. Logo, em face de tais alterações, já não
estaríamos em face de um “recurso de embargos infringentes”, mas, sim, apenas
em face de um “pedido de reconsideração”, incabível na espécie. Como se vê,
existem vários elementos complicadores à tese do cabimento de embargos
infringentes em ação penal originária junto ao STF. Esses embargos infringentes
previstos apenas no RISTF e que foram ignorados pela Lei 8.038, parecem
esvaziados da característica de recurso. Tudo está a indicar que, o que possui
efetivamente tal característica, é a figura dos embargos infringentes previstos
no segundo grau de jurisdição, que são julgados, além dos membros do órgão
fracionário, por mais um conjunto de julgadores que são, no mínimo, o dobro da
composição originária. Outro ponto intrigante e que reforça o hard case diz
respeito ao seguinte ponto: pelo RISTF, a previsão dos embargos infringentes
cabíveis da própria decisão do Órgão Pleno do STF necessita de quatro votos. E
por que não cinco? E por que não apenas três? Quem sabe, dois? Ou apenas um
voto discrepante? Por outro lado, seria (ou é) coerente (no sentido dworkiniano
da palavra) que, em uma democracia, uma Suprema Corte – que, no caso, funciona
como Tribunal Constitucional – desconfie de seus próprios votos? Não seria uma
capitis diminutio pensar que o mesmo Ministro – vitalício, independente – que
proferiu voto em julgamento em que podia, a todo o momento, fazer apartes,
dar-se conta de que, ao fim e ao cabo, equivocou-se? Ou seja: um Ministro
condena um cidadão que tinha direito a foro especial (privilegiado) e, depois,
sem novas provas, dá-se conta de que “se equivocou”...
O RISCO DO PARADOXO
Mas, o conjunto de indagações não para por aqui. Pensemos na
seguinte questão: para uma declaração de inconstitucionalidade – questão
fulcral e maior em um regime democrático – são necessários seis votos para o
desiderato de nulificação (de um ato normativo). Pois é. Mas, em matéria
criminal, sete votos não seriam suficientes para uma condenação...
(considerando que quatro Ministros votem pela absolvição). Indo mais longe:
também seis votos (maioria absoluta), pelo RISTF, não são suficientes para
colocar fim à discussão penal... Com isso, chega-se ao seguinte paradoxo: no
Brasil, é possível anular uma lei do parlamento e até emenda constitucional com
seis votos da Suprema Corte. Entretanto, não é possível tornar definitiva uma
decisão que dá procedência a uma ação penal originária. Isto porque, segundo o
RISTF, havendo no mínimo quatro votos discrepantes, cabe “recurso por embargos
infringentes”. Ora, no caso do processo civil, além de toda a teoria exposta, a
resolução torna-se ainda mais simples, uma vez que há dispositivo legal que
explicita a questão (não parece que seria realmente necessário),
especificamente o artigo 1.214, que fala que “Adaptar-se-ão às disposições
deste Código as resoluções sobre organização judiciária e os regimentos
internos dos tribunais”. Assim, parece interessante que examinemos essa
problemática. Desde o caso Marbury v. Madison,tem-se a tese da rigidez
Constitucional. Isso quer dizer que não é qualquer legislação que pode alterar
a Constituição. E tampouco leis ordinárias podem ser alteradas por Regimentos
Internos. Por isso, já que a questão das “lendas urbanas” está se proliferando
– e digo isso com todo o carinho, até porque essas discussões fazem com que
todos possam crescer -, lanço minhas dúvidas sobre essehard case (cabem mesmo
embargos infringentes nos processos criminais de competência originária, na
medida em que a Lei que regulamentou a processualística – 8.038 – não tratou da
espécie?). Minhas reflexões são de índole constitucional-principiológica.
Sempre escrevi que os julgamentos devem ser por princípio e não por políticas.
Ou seja, julgamentos judiciais não podem estar baseados na subjetividade
plenipotenciária do intérprete, tampouco no interesse de grupos ou ideologias.
Julgamentos devem se fundamentar em princípio e sempre devem traduzir uma
interpretação que apresente o melhor sentido para as práticas jurídicas da
comunidade política. E, portanto, não devem ser ad-hoc. Isso quer dizer que o
STF deverá, em preliminar, examinar a antinomia infraconstitucional e
constitucional da equação “RISTF-Lei 8.038-CF/88”. Para o processo do
“mensalão” e para os casos futuros. O STF terá que dizer se o seu RI vale mais
do que a Lei nº 8.038/1990. Se sim, muito bem, legitima-se qualquer “recurso de
embargos infringentes”; se não, parece que o veredicto do plenário será
definitivo. Eis o hard case para descascar.
PS: não parece ser um
bom argumento dizer que os embargos infringentes se mantêm em face do “PRINCÍPIO”
(sic) do duplo grau de jurisdição, isto é, na medida em que um acusado detenha
foro privilegiado e, portanto, seja julgado em única instância, isso faria com
que o sistema teria que lhe proporcionar uma espécie de “OUTRA INSTÂNCIA” (sic).
Com a devida vênia, esse argumento é meramente circunstancial e não tem guarida
constitucional. O foro privilegiado acarreta julgamento sempre por um amplo
colegiado, que é efetivamente o juiz natural da lide. Há garantia maior em uma
República do que ser julgado pelo Tribunal Maior, em sua composição plena? Não
é para ele, o STF, que fluem todos os recursos extremos? Um acusado “patuleu”
tem duplo grau porque é julgado por juiz singular; um acusado “não-patuleu”
(com foro no STF) não tem o duplo grau exatamente porque é julgado PELO
COLEGIADO MAIS QUALIFICADO NA NAÇÃO: O STF, em full bench. E não parece ser
pouca coisa, pois não?!?!?!