Paulo Moreira Leite
Em 1983, durante um
depoimento de 50 minutos ao extinto Vox Populi, na TV Cultura, uma espectadora
perguntou a Antonio Belchior qual a importância do sucesso profissional em sua
vida. "SUCESSO É BRILHANTE, É BONITO," disse, antes de acrescentar:
"A PUBLICIDADE DE MEU NOME INTERESSA POUCO. O QUE ME INTERESSA É A
GLÓRIA, O RECONHECIMENTO DE TER FEITO UMA COISA QUE, COMO ARTISTA E COMO
CIDADÃO, JULGUEI SIGNIFICATIVA DE FAZER.".
Morto neste
domingo, aos 70 anos de idade, a existência reclusa de Belchior nos últimos
anos de vida alimentou sérias dúvidas sobre a permanência de seu nome
como garantia de vendas num mercado musical cada vez mais dominado por esquemas
comerciais pesados. Não há dúvida, porém, de que alcançou a glória – no sentido
mais nobre que essa palavra possui – como demonstram as homenagens recebidas,
muito além da hipocrisia quase sempre obrigatória nessas ocasiões.
A CULTURA
BRASILEIRA TEM UMA DÍVIDA IMENSA com a coerência de Belchior e sua capacidade
para apresentar as próprias ideias de forma atraente e compreensível. Era
porta-voz de um pensamento relativamente raro no país – libertário no sentido
anarquista da palavra, de rejeição radical a toda forma de opressão e
resistência a todo tipo de autoridade, mesmo consentida. Na música "Como o
Diabo Gosta" chegou a escrever ("NUNCA FAZER O QUE O MESTRE MANDAR,
SEMPRE DESOBEDECER") afirmando uma noção que iria repetir outras vezes.
Poeta que empregava
a música como um suporte para versos que sempre foram a prioridade assumida de
suas canções, construiu uma obra sofisticada e literariamente complexa.
Engajado em diversas campanhas democráticas, mantinha o equilíbrio. Sem nunca
ter sido panfletário, jamais escondeu uma escolha política clara entre as
opções enfrentadas pela história do país ao longo dos últimos 50 anos, condição
que foi bem traduzida por pichações surgidas nos muros de grandes cidades
brasileiras após sua morte: "Fora Temer. Fica Belchior."
Seminarista na
adolescência, tinha um bom conhecimento de latim, o que lhe permitia um manejo
erudito da língua portuguesa. Acumulou uma cultura literária acima da média,
inclusive de autores do período romântico, brasileiros e portugueses, além de
clássicos franceses. Também era um leitor frequente da Bíblia e de obras religiosas,
em geral. Admirador de Antonio Conselheiro, o beato que liderou a revolta de
Canudos no final do século XIX, exibia um traço místico no comportamento, fator
que boa parte dos amigos mais antigos associam ao desaparecimento – sem nenhuma
explicação plausível até aqui -- ocorrido na última década.
O arquiteto e
compositor Fausto Nilo, um dos primeiros amigos que Belchior fez em Fortaleza
depois que a família saiu de Sobral, no interior do Ceará, para se estabelecer
na capital cearense, recorda um episódio significativo. Aluno do primeiro ano
do curso científico, de um dia para o outro Belchior sumiu da vista de todos
por um longo período sem mandar notícias. "DE REPENTE, QUANDO EU ESTAVA
ANDANDO PELA CIDADE, ELE BATEU NAS MINHAS COSTAS PARA CONTAR O QUE ESTAVA
FAZENDO," contou Fausto Nilo. "Vestia trajes de noviço franciscano e,
antes de se despedir, me deu conselhos para seguir na vida."
Estudante de
Medicina, que frequentou até o quarto ano, Belchior considerava-se um herdeiro
leal das ideias de 1968, o ano que transformou corações e mentes de sua
geração. "Ele nunca foi militante
mas frequentava o movimento estudantil," recorda Fausto Nilo, referindo-se
a um universo político que incluiu lutas políticas importantes da juventude no
mundo inteiro – inclusive no Brasil sob a ditadura militar – e mudanças de
comportamento em vários níveis da vida cotidiana.
José Genoíno, a
principal liderança entre os estudantes da Universidade Federal do Ceará, teve
um percurso político comum a vários colegas do país inteiro. Estudante de
Direito, quadro clandestino do PC do B, participou da guerrilha do Araguaia.
Saiu de lá para a tortura e cinco anos de prisão. Ao deixar a cadeia,
participou da fundação do Partido dos Trabalhadores. Em 1998, quando Genoíno
disputava o terceiro mandato como parlamentar, Belchior participou de um show
em benefício de sua campanha.
O sucesso de
determinadas músicas chegou a tal ponto que ele só precisava pronunciar a
primeira estrofe do primeiro verso -- deixando que o público cantasse até o
final, sem erro. "Só preciso cantar 'Sou apenas um rapaz
latino-americano'. Depois o publico faz o resto," costumava contar aos
amigos, divertido. Nas canções de grande empatia, o bis não era suficiente.
Precisava cantar três vezes.
Mesmo mantendo um
convívio regular e caloroso com os amigos da faculdade, seu caminho pela
política seguiu um roteiro próprio. Em 1976, ano em que a violência da ditadura
produziu a morte do operário Manoel Fiel Filho, em janeiro, e a Chacina da
Lapa, em dezembro, que contabilizou três execuções no local, além de outros
cinco casos de tortura, Belchior escreveu "COMO NOSSOS PAIS," obra
prima com mensagens para o conjunto do país, inclusive para si próprio.
Sublinhando o valor
supremo da vida humana num sistema onde massacres eram parte da paisagem, diz
que "VIVER É MELHOR DO QUE SONHAR" e reconhece que "QUALQUER
CANTO É MENOR DO QUE A VIDA DE QUALQUER PESSOA."
Num país onde
"HÁ PERIGO NA ESQUINA", "ELES VENCERAM E O SINAL ESTÁ FECHADO
PARA NÓS, QUE SOMOS JOVENS." Referindo-se aos modismos mentais da
época, acusa: "QUEM ME DEU A IDEIA DE UMA NOVA CONSCIÊNCIA ESTÁ EM CASA,
GUARDADO POR DEUS, CONTANDO O VIL METAL."
É um imenso
pessimismo, coerente com a situação no início da década de 1970. Mas não
é uma derrota absoluta. É preciso querer enxergar a mudança: quem ama o
passado" (...) "não vê que o novo sempre vem."
Em 1996, numa
entrevista a jornalista Claudia Nocchi, Belchior colocou-se como
devedor de "uma corrente de pensamentos que nasceu nos sessenta." O
radicalismo residia aí. Falou de uma geração que quis " MUDAR O MUNDO, SE
DESESPEROU, PERDEU, SE DECEPCIONOU". A seguir reforçou: "é só o
que me interessa." Quando a jornalista quis saber se ele não se arrependia
por ter abandonado o curso de Medicina, decisão que provocou uma compreensível
reviravolta na casa dos país, Belchior deu uma resposta figurada que também
pode ser aplicada a outros temas: "neste cinema você desempenha o papel
que lhe cabe."
Numa época
em que a vida privada é prato de consumo e ajuda a reproduzir o mundo
como mercadoria, Belchior fazia um esforço imenso para ser o diretor,
estrela e protagonista de seu próprio filme. Protegendo a vida privada com
cuidados extremos, portava-se como trovadores à moda antiga, onde a pessoa real
era confundida com lendas construídas a sua volta. Uma vez, disse claramente
que sua pessoa era "MENOS IMPORTANTE DO QUE O PERSONAGEM QUE,
ACIDENTALMENTE, PODE SER EU." Em outra oportunidade, falou de uma
"espécie de biografia de um personagem de minha geração com o qual me
identifico." Sempre em ambiente de certo mistério, jamais permitiu que
seus casamentos, seus filhos, os hábitos de consumo, se tornassem assunto de
domínio público no parque de diversos com homens e mulheres da indústria
cultural. Estes cuidados ajudam a entender como um rosto conhecido e uma voz
inconfundível puderam desaparecer de uma vez por todas por tanto tempo, levando
consigo as razões para um gesto tão extremo.