OS DADOS DO BRASIL
Desde a semana passada que estou tentando escrever sobre um belo poema da Marina Silva, cantando em versos um instrumento de jogo de azar, que nós, em nossa época de criança em Bom Conselho, chamávamos de bozó. Para mim, durante as festas de fim de ano, uma das diversões era ver as pessoas jogando bozó, que significava um jogo onde cada um dos jogadores apostava uma quantia, para ver quem mais fazia pontos quando dois bozós eram jogados de dentro de um canequinho, geralmente de coro, numa mesa forrada com um pano branco. Lembro disto a partir de outras lembranças, como a do meu pai dizendo para um irmão meu:
- Se eu pegar você jogando bozó, eu começo a bater em você de lá mesmo, até em casa!!!
Meu irmão baixava a cabeça e tomava o caminho do centro, onde estavam postas várias mesas de bozó. Quando eu chegava na festa já avistava meu irmão, batendo com a canequinha na mesa, soprando, segundo ele para dar sorte, e jogando os dois cubos numerados sobre o pano branco e macio. Não tinha jeito de demover meu irmão daquele jogo, e eu achava melhor ficar olhando, tanto os pontos que meu irmão fazia, quanto a silhueta de meu pai quando apontava na loja de seu Antônio Umbelino, e avisá-lo do perigo. Até hoje meu irmão me deve essa.
Só depois vim saber que aqueles cubos brancos eram chamados de dados, e bozó se referia mais ao jogo, do que propriamente a eles. Eles eram usados em jogos menos pecaminosos como o caipira, que meu pai não se importava que meu irmão jogasse. Eu, na qualidade de sexo frágil, dependente e mofino, não podia nem jogar no jacaré. Fumar e jogar qualquer coisa era considerado um absurdo para as mulheres. Isto foi dito a mim várias vezes pelo meu pai entre uma baforada e outro de um cigarro de fumo de corda.
Estes foram os primeiros dados com os quais eu tive contacto. Quando bem usados eles eram inofensivos. Afinal eles foram feitos para divertir, eu penso, pois não fui pesquisar sua origem. Mas, muitos sofreram com eles quando ficavam viciados. No entanto esta é outra história da qual agora não quero tratar.
Nos últimos dias tive contacto, através da imprensa, com outros dados. De um eu cheguei bem perto, do outro, estou muito longe e quero distância. Resolvi escrever sobre eles porque eles refletem um pouco a situação em que se encontra nosso país, que queiramos ou não, ainda é um país dos contrastes.
Comecemos com o dado da Região Sudeste. O Dado de lá chama-se Carlos Eduardo Dolabella Filho, nasceu em 1980, de família de classe média, muito conhecido por ser um ator e um cantor com uma certa fama, embora sua fama maior venha de ser um namorador inveterado, e ter um, o que parece ser, seu hobby preferido: bater em mulheres. Em poucos anos de vida, se projetou como o maior arruaceiro e já responde a dois processos na justiça criminal, ambos por ter dado safanões em mulheres também famosas.
Em respeito ao meu gênero, jamais diria que mulher gosta de apanhar, mas, venhamos e convenhamos, depois da surra que este Dado deu na Luana Piovanni, atriz global, que se tornou pública pelo processo movido contra ele por ela, quem quisesse algum relacionamento com este moço, deveria está pedindo para apanhar também. Foi o que aconteceu com a Viviane Sarahyba, uma modelo famosa. Casou com ele em 2009 e entrou na porrada, sem dó nem piedade. Outro processo em cima do moço.
Este é o dado viciado, igual aqueles de alguns caipiras de Bom Conselho, que só dava cabra (seis no jogo do bicho), e que quando meu irmão descobria e começava a “cevar” a cabra, o dono mudava o dado. Meu irmão reclamava dizendo que o dado estava imanado. O Dado nasceu numa região rica, se educou bem, não passou fome, e hoje além de cantar, sua diversão é bater em mulher.
Apresentemos o nosso outro Dado da Região Nordeste. O Edvaldo de Siqueira, o Dado, de apenas 5 anos, nascido e criado na comunidade do Coque, que ostenta o menor IDH do Recife, e cujo feito maior até hoje foi ter se apresentado à candidata à presidente da república Marina Silva, fazendo-a chorar, com o seu canto infantil.
Este é um dado ainda não viciado. Não tem idade para sê-lo. Até quando poderemos ver o Dado crescer sem ser imanado e enganado pela nossa sociedade de contrastes? Depois de sua façanha artística, ele continua lá, em sua casinha minúscula, junto de sua mãe e de um irmão. Não tem idade para projetar seu futuro, assim como eu não tinha aos olha os dados de minha terra, rolando pela mesa. Nós é que temos de projetá-lo e lutar para que no futuro não tenha os mesmo vícios dos outros dados. Mesmo fora da escola porque, segundo sua mãe, não encontra vagas, ele se mostra alegre e feliz, mesmo dentro da miséria em que vive. Quando ele diz que gosta da Marina porque ela é boa, não está fazendo propaganda política, e talvez nem saiba ainda o que está dizendo, mas tem na memória o coração de estudante (Veja o vídeo).
No Brasil temos, certamente muitos mais dados, do que aqueles aqui mostrados, uns com vícios e outros sem vícios, mas é com eles todos que temos que jogar no futuro, coibindo os vícios e incentivando os Dados. Se eu fosse uma poetisa faria como a Marina Silva, que pôs em versos seu encontro com o menino Dado, refletindo sua sensibilidade com os problemas do nosso país.
Pequeno Dado – por Marina Silva
Eis um pequeno Dado
Jogado por sobre a mesa:
Ali nada era certeza
Tudo era interrogar.
Mas, para minha surpresa,
Na forma de um colosso,
o pequeno Dado jogado,
Era de carne e osso
E sabia até cantar.
Pulava, gingava e sorria,
Cheio de alegria
No milagre do olhar,
No cuidado e na labuta
De René, Nega e Ângela,
Mulheres que nos constrangem
A também lhe enxergar.
A também a dar-lhe a voz
Voz que em cada um de nós,
Visitantes, jornalistas,
Fotógrafos a perder de vista,
Se embargava no chorar.
Vendo aquele Dado exposto
Num lugar de dar desgosto
Que nem dá para explicar
Como é que aquele Dado
Lá no Coque tão jogado
Podia ser tão garboso,
Podia ser tão charmoso.
Hip-hop, capoeira, cantor,
Constitucionalista,
Denunciador de injustiça,
Com quatro anos de idade?
Dado, meu pequeno Dado
Que Dilma, Serra, Plínio ou Marina
Ajude a mudar a sina
De tantos Dados jogados.
O saudoso Darcy Ribeiro dizia que só havia duas opções nesta vida: se resignar ou se indignar, e que ele jamais se resignaria. Eu já não sou tão radical pois, certas vezes, eu me resigno. Mas, ninguém é ovelha para se resignar com a desigualdade dos Dados.(este texto foi gentilmente roubado do Blog da CIT que foi escrito por Lucinha Peixoto).
Um comentário:
Altamir, há muito tempo acompanho as atividades deste seu espaço. Sempre divulguei este espaço.Mas, naõ era isso q eu queria falar. Gostaria de registrar q este fora o melhor poste que já li aqui. Gostei muito. Será um dado q ficará marcado.
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