DONA CULPA
Marina Silva
Quando começam as chuvas, todos sabemos que haverá enchentes nas
grandes cidades, desbarrancamento e moradias soterradas nos morros. A CULPA,
SEGUNDO OS AGENTES PÚBLICOS, É DO EXCESSO DE CHUVAS E DA INSISTÊNCIA DOS
MORADORES EM PERMANECER NO LOCAL. Mais um ano de seca no sertão nordestino.
Estados e municípios disputam desesperados os recursos para barragens,
carros-pipa, poços, atendimento de emergência. A culpa? DAS PESSOAS QUE MORAM
EM LUGAR ERRADO E DA NATUREZA, QUE MANDOU TODA A ÁGUA PARA OUTRA REGIÃO. Já
estamos nos acostumando com essa lógica. Nos anos de crescimento e bonança, os
que estão no poder arvoram-se a dar lições ao mundo; nos anos das vacas magras,
o problema é a crise na Europa, a guerra cambial, a falta de ousadia dos
empresários... Para os que estão na oposição, o sucesso é resultado de alguma
decisão anterior ao governo atual, enquanto o fracasso vem dos erros cometidos
por esse. Atualmente, voltamos à "interrupção no fornecimento" de
energia (há que se buscar novos nomes para o velho apagão) que, como sabemos,
nos últimos anos teve vários culpados: FALTOU CHUVA NOS RESERVATÓRIOS, UM RAIO
DESLIGOU A TRANSMISSÃO, O CALOR FEZ TODO MUNDO LIGAR O VENTILADOR. Mas o
ministro tem um jargão na ponta da língua que sintetiza o condomínio dos culpados:
"problemas ambientais'. Leia-se índios e ecologistas, que atrasam a
construção de usinas. Uns não têm força para demarcar e proteger suas terras,
outros não conseguem impedir a desfiguração do Código Florestal, mas o ministro
diz que, juntos, têm o poder de apagar a luz do país. Cá entre nós, desconfio
que o planejamento energético brasileiro é atrasado e não prevê a
diversificação e distribuição necessária para superar os limites de nossa
matriz energética. Digo "desconfio" porque quase ninguém conhece os
planos desse setor, herança e continuação das estruturas centralizadas,
anteriores à democratização do país. Os poucos que têm acesso parecem muito
competentes, mas não podem vencer um exército de índios. A culpa do apagão e de
todos os desastres anuais previsíveis e anunciados não pode ser dos políticos e
gestores públicos. Afinal, quem escolhe os diretores de órgãos públicos e
agências? Quem coloca afilhados políticos em cargos técnicos? Quem faz acordos
para entregar ministérios com "porteira fechada" aos partidos
políticos? Quem nomeia os que, pouco tempo depois, serão flagrados em atos
ilícitos e práticas de corrupção? Não, certamente a culpa não pode ser dos que
planejam, coordenam e executam as políticas públicas nas cidades, nos Estados e
no país. CONVOQUEM O POVO, OS ÍNDIOS, OS ECOLOGISTAS, A CHUVA. ALGUÉM TERÁ QUE
SE CASAR COM DONA CULPA.
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