Guilherme Fiuza
– Tu viu o maluco da retroescavadeira?
– Sensacional.
– Como, sensacional? O cara é um assassino!
– Não vejo dessa forma.
– Que forma, dodói? Não tem forma nenhuma. O cara jogou em cima de pessoas uma máquina capaz de derrubar um prédio. É assassino. Ponto.
– Depende.
– Depende do quê?
– Do contexto.
– Que contexto?
– Ué, tu sabe o que levou o cara a fazer aquilo?
– Sei. Quis passar por cima de um motim de policiais em greve.
– Mais ou menos.
– Tá. Policiais em greve ilegal.
– É. Mas não tô falando disso, não.
– Tá falando de quê?
– Do Mal.
– Ah, maldade por maldade...
– Não tô falando de qualquer maldade. Tô falando do Mal. Do Mal Absoluto.
– Existe isso?
– Não só existe como aproveitou uma brecha e encarnou aqui no Brasil.
– Tem certeza?
– Infelizmente tenho. Aí você raciocina: e se aquele homem dirigindo a retroescavadeira no Ceará estivesse combatendo o Mal Absoluto? Você ainda o chamaria de assassino?
– Você tá me confundindo.
– Não tem confusão nenhuma. Tá tudo muito claro.
– Como você sabe que o Mal Absoluto tava diante daquela retroescavadeira?
– Amigo, desculpe: você não vê televisão? Não lê jornal?
– Claro que sim.
– Então? Não notou que tá tudo interligado?
– Tudo o quê?
– Tudo. Óleo na praia, Amazônia acabando, democracia em chamas, aquecimento global...
– Espera aí, acho que a ligação tá ruim: você falou aquecimento global?
– Exato. Você ouviu muito bem.
– Mas isso também tem a ver com...
– Claro! Não te falei que é o Mal Absoluto?
– Falou.
– Então? Absoluto quer dizer tudo. Geral. Enfim, a porra toda.
– Ah, tá.
– E se você não perceber que os milicianos do clima estão conectados com os milicianos do Ceará, você nunca vai entender a ação libertadora daquela retroescavadeira.
– Caramba, agora entendi tudo.
– Putz... Até que enfim.
– Então aquilo não era uma retroescavadeira pilotada por um assassino avançando para esmagar seres humanos. Era um ato de resistência democrática contra o fascismo!
– Exatamente! E contra o bolsonarismo.
– Isso. Dá no mesmo, né?
– Ufa, até que enfim a sua ficha caiu.
– Aaaaaiiiiiiii!!!!!!!! Socorro!!!
– O que houve?!
– Caiu uma mosca na minha sopa!
– Que susto... Achei que você estivesse enfartando.
– Que ódio! Segunda vez que isso me acontece em menos de um ano. Nunca tinha acontecido antes.
– O quê?! Desde que o Bolsonaro assumiu já caíram duas moscas na sua sopa?!
– Meu Deus! Não tinha me tocado disso. Obrigado, mas vou ter que desligar. Preciso avisar à imprensa.
– Boa sorte, amigo. Aconteça o que acontecer, não recue. O Bem está do nosso lado.
– Tá. Se for preciso, onde eu arranjo uma retroescavadeira?
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