Carlos Andreazza
É uma obra-prima a decisão de Raquel Dodge, Procuradora-Geral da República, que mandou arquivar o inquérito por meio do qual os ministros Dias Toffoli e Alexandre de Moraes pretendem instaurar uma janela de exceção no Brasil, um mecanismo de investigação sem objeto determinado que, na prática, serve para que invistam, a qualquer tempo, contra qualquer um que criticasse os membros do STF – tudo arbitrariamente abarcado, segundo juízo exclusivo de Moraes, em ataques à honra de integrantes daquela corte.
Há quem diga, porém, que o Ministério Público não tem o poder de arquivar o inquérito. A discussão a respeito vai longe… Independentemente do efeito prático da determinação, fica o recado – e não é um qualquer.
Não é aceitável que um inquérito avance sem o respeito óbvio ao devido processo penal; sem, portanto, que seja clara a delimitação da investigação penal – quais o objeto e o fato investigados. Dodge deu aula. Delimitar genericamente uma investigação, sem definir sujeitos, e investigar atos indeterminados, sem cortes de tempo e espaço, é algo intolerável à democracia – digo eu.
Em seu texto, Dodge lembra que o procedimento fora instaurado em 14 de março, e que já no dia seguinte pedira informações sobre a matéria específica do inquérito e a natureza da apuração estabelecida. Sem sucesso; de modo que, até hoje, 16 de abril, mais de mês depois, os autos ainda não haviam sido remetidos ao Ministério Público. Uma aberração.
Dodge cita também, em outros termos, a censura à reportagem da revista Crusoé, derivada de ordem lastreada no inquérito desconhecido, registrando que tal se deu sem que o Ministério Público, titular exclusivo da ação penal, previamente se manifestasse. Uma ilegalidade.
É mesmo uma aberração que a Procuradoria-Geral da República não tenha sido chamada a se pronunciar sobre esse inquérito – uma (mais uma) afronta à Constituição Federal patrocinada pelo tribunal ao qual cabe zelar pela Constituição Federal. E talvez esteja aqui, desde a condição exclusiva de titular da ação penal, o fundamento para que Dodge se tenha sentido legalmente autorizada a determinar o arquivamento do inquérito.
A procuradora-geral da República lembra que o sistema de proteção a direitos e garantias fundamentais é composto por regras e princípios que buscam plantar segurança jurídica, o que equivale a evitar concentração de poder. Lista, então, os princípios da legalidade, do contraditório, da ampla defesa e da imparcialidade para invocar que sejam – que têm de ser – observados em cada caso concreto, de maneira a garantir a impessoalidade na definição do juízo natural. Tudo o que não houve – digo eu – na implantação e na condução do inquérito ora demolido. A procuradora-geral da República desenhou.
A aula básica de fundamentos constitucionais que Dodge oferece lembra que o sistema penal acusatório crava a separação de funções na persecução criminal – e que tal não autoriza que o órgão julgador seja o mesmo que investiga e acusa. Isso não existe para o bem, para o conforto, do juiz ou do procurador, mas como garantia ao cidadão contra excessos de autoridade. (Tomo a liberdade de sugerir que alguns entre os colegas da doutora estudem esses limites aplicados à atuação não raro exorbitante do Ministério Público; mas essa é outra história.)
Raquel Dodge é corajosa e brilhante ao limpidamente afirmar que a figura de que se arvorou Alexandre de Moraes, a de juiz investigador, não existe mais no Brasil desde 1988, felizmente substituída pelo sistema penal acusatório – uma conquista de que a sociedade brasileira não abre mão.
Ela é explícita – dura mesmo – a escrever que a lei do país não autoriza que o Judiciário conduza investigação penal, tanto mais se sigilosa e à revelia do titular da ação penal, o Ministério Público. Um conjunto inacreditável de barbaridades. A instauração do inquérito autoritário de Toffoli e Moraes é uma rara coleção de violações e vícios constitucionais. A pancada é firme: “O ordenamento jurídico vigente não prevê a hipótese de o mesmo juiz que entende que um fato é criminoso determinar a instauração de investigação e designar o responsável por essa investigação.”
Lendo isso, lendo o texto da decisão da procuradora-geral da República, entendemos que Dodge situou dois ministros do Supremo como praticantes do melhor Direito do mais ativo tribunal revolucionário. Uma memorável escovada.
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