Guilherme Fiuza
E eis que o debate nacional, cada vez mais dominado pela picaretagem intelectual, chega à suprema impostura: em nome da democracia, as novas vozes da resistência cenográfica decretam que uma manifestação de rua – ou, mais precisamente, a ideia de uma manifestação de rua – é autoritária! Nunca se viu nada parecido em tempos democráticos. A rua agora tem dono, que decide quem pode sair de casa. Fascistas são os outros.
Nem Lula, que depenou o país e tentou transformá-lo em quintal do PT, ousou atacar a legitimidade de qualquer manifestação no país – fossem meia-dúzia de gatos pingados mandando-o ir para Cuba ou milhões de pessoas pedindo o impeachment de sua sucessora. Você jamais ouviu de Lula – de Lula! – uma palavra contra o direito de qualquer pessoa sair à rua para se manifestar sobre o que bem entendesse. Podia dizer que era coisa da elite branca, etc, mas jamais sequer alegou que um ato de protestar em público era expressão de autoritarismo.
Nem Fernando Collor de Mello, talvez o governante mais prepotente que o país já teve, vendo um número cada vez maior de pessoas ocupando as ruas pela sua queda, jamais se atreveu a dizer que havia algo de autoritário ou antidemocrático nas manifestações. E olhem que entre os manifestantes havia gente como José Dirceu, Lindbergh Faria e outros famosos impostores – o que não tirava a legitimidade do movimento popular que levou, de forma democrática, ao impeachment dele.
Pois bem. Essa democracia que já sobreviveu a prepotentes e larápios tem agora uma novidade quente: personagens que sempre se disseram liberais aparecem dizendo que a manifestação A pode, mas a manifestação B não pode. Como não têm coragem de dizer que não pode, dizem que um determinado ato público – que eles não poderiam saber o que é antes de acontecer – contém motivação autoritária; que pode ser um golpe contra as instituições; que é mais democrático ficar em casa.
Como eles sabem de tudo isso? Nem Dilma Rousseff, a famosa vidente que previu os tiros contra a caravana de Lula, ousou insinuar que qualquer das inúmeras manifestações de rua contra ela desaguaria num golpe institucional. Sendo que mesmo ela – Dilma, a única –, espalhando por aí até hoje que foi vítima de um golpe, jamais se atreveu a sugerir que as manifestações de rua fossem, em si, uma orquestração autoritária. Nem Dilma teve a petulância de intervir nas intenções alheias, de decretar qual protesto é legítimo ou não é.
Agora o mais grave (sim, é pior ainda): esses novos democratas de butique sabem muito bem que a agenda de reformas – que eles sempre defenderam – está em implantação (da forma que eles sempre pediram) e está também sob risco de sabotagem. Não por divergência de mérito, mas por disputa de poder. E quando surge a iniciativa de pressionar o Congresso contra a sabotagem da agenda que eles sempre pregaram, de que lado eles ficam?
Acertou, seu danado. Ficam do lado da sabotagem, dizendo que estão lutando contra a ameaça de fechamento do Congresso. A lógica personalizada é boa por isso: se o dono mandar, ela rebola até o chão, na boquinha da garrafa, e não tem que dar satisfação a ninguém.
Todo mundo viu o que a imprensa amiga do PT fez na época do impeachment: fotografava faixas de grupinhos pedindo intervenção militar no meio da multidão pedindo a deposição de um governo corrupto e botava na manchete “o viés antidemocrático” do protesto.
É horrível isso, não é? Covarde, canalha, etc, certo? Pois é exatamente o que vocês estão fazendo agora, caros liberais arrependidos. Aliás, vocês estão ajudando a esconder a agenda positiva da equipe do Paulo Guedes (que vocês veneravam até anteontem), com a sua chocante indiferença perante ações cruciais como a MP da Liberdade Econômica – engolida e soterrada em meio a esse falatório periférico que vocês travestem todo dia de crise governamental.
Parece que tem muita gente querendo protestar contra a sabotagem das reformas (que é um risco) e da informação (que é uma realidade). E, por mais que vocês queiram, essa gente não vai pedir licença a vocês.
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