Augusto Nunes (Texto publicado em 1 de
maio de 2016)
Já contei aqui a história da doida mansa que, no começo dos anos 60,
apareceu no portão da minha casa em Taquaritinga para buscar a chave do Banco
do Brasil. Ouvi a campainha, vi pela janela da sala de jantar uma mulher negra,
franzina e maltrapilha e saí para atendê-la. Ela quis saber se eu era filho do
prefeito. Disse que sim. Ela informou que era filha de Getúlio Vargas. Achei
que aquilo era assunto para gente grande e fui chamar minha mãe.
Antes que dona Biloca dissesse alguma coisa, ela se identificou
novamente e revelou que o pai lhe deixara como herança o Banco do Brasil. Com o
suicídio, tornara-se dona da instituição financeira, incluídos bens imóveis e
funcionários ─ além do mundaréu de dinheiro, naturalmente. O doutor Getúlio
avisara que a chave de cada agência ficava sob a guarda do prefeito. Quando
quisesse ou precisasse, bastaria solicitá-la ao chefe do Executivo municipal.
Era por isso que estava lá, repetiu ao fim da exposição. Meu pai estava
na prefeitura, entrei na conversa. A herdeira do banco disse que esperaria no
portão. Dona Biloca percebeu que aquela maluquice iria longe, decidiu passar a
pendência adiante e transferiu-a para o primogênito ─ que, para sorte de ambas,
trabalhava no Banco do Brasil de Taquaritinga. Depois de ensinar o caminho mais
curto, recomendou-lhe que fosse até a agência, procurasse um moço chamado
Flávio e transmitisse o recado: “Diga que a mãe dele mandou dar um jeito no
problema da senhora”.
O jeito que deu confirmou que meu irmão mais velho era mesmo paciente e
imaginoso. Ao saber com quem estava falando, dispensou à visitante as
deferências devidas a uma filha do presidente da República, ouviu o caso com
cara de quem está acreditando em tudo e, terminada a narrativa, pediu licença
para falar com o gerente. Foi ao banheiro e voltou cinco minutos depois com a
informação: a chave estava no cofre da agência, não na casa do prefeito. Mas só
poderia entregá-la se a filha de Getúlio confirmasse a paternidade ilustre.
“A senhora precisa buscar a certidão de nascimento no cartório”,
explicou Flávio. Ela pareceu feliz, levantou-se da cadeira e avisou que em meia
hora estaria de volta com o papel. Ressurgiu três ou quatro meses mais tarde,
mas de novo no portão da minha casa, outra vez atrás do prefeito. De novo foi
encaminhada ao moço da agência, que liquidou a questão do mesmo jeito. O ritual
teve quatro reprises em menos de dois anos. Até que um dia ela saiu em direção
ao cartório e nunca mais voltou.
Lembrei-me da doida mansa que coloriu minha infância quando o presidente
Lula registrou em cartório um Brasil inexistente. Conferi o calhamaço e fiquei
pasmo. Tinha trem-bala, aviões que pousavam e decolavam com a pontualidade da
rainha da Inglaterra, rodovias federais de humilhar motorista alemão, luz e
moradia para todos, três refeições por dia para a nova classe média, formada
pelos pobres dos tempos de FHC. Quem quisesse ver mendigo de perto que fosse
até Paris e se contentasse com algum clochard.
A transposição das águas do São Francisco havia exterminado a seca e
transformado o Nordeste numa formidável constelação de lagos, represas e
piscinas. O sertão ficara melhor que o mar. Os morros do Rio viviam em paz, os
barracos valiam mais que as coberturas do Leblon. E ainda nem começara a
exploração do pré-sal, que promoveria o Brasil a presidente de honra da OPEP.
Faltava pouco para que a potência sul-americana virasse uma Noruega ensolarada.
No país do cartório, o governo não roubava nem deixava roubar, o
Mensalão nunca existira, os delinquentes engravatados estavam todos na cadeia,
os ministros e os parlamentares serviam à nação em tempo integral e o
presidente da República cumpria e mandava cumprir cada um dos Dez Mandamentos.
Lula fizera em oito anos o que os demais governantes não haviam sequer esboçado
em 500.
Quando conheci aquela mistura de Pasárgada com emirado árabe, bateu-me a
suspeita: daqui a alguns anos, é possível que um filho do prefeito de São
Bernardo do Campo tenha de lidar com um homem gordo, de barba grisalha, voz
roufenha e o olhar brilhante dos doidos de pedra, exigindo a devolução da
maravilha que sumiu. A filha de Getúlio tropeçara na falta da certidão de
nascimento. O pai do país imaginário estará sobraçando a papelada cheia de
selos, carimbos, rubricas e garranchos.
Lembrei-me de novo da filha de Getúlio ao ver o que Dilma Rousseff anda
fazendo para continuar no emprego que já perdeu. Depois do comício de todas as
tardes, a alma penada atravessa a noite e a madrugada uivando o mantra: “É
golpe”. É muito provável que, daqui a alguns anos, apareça na porta da casa do
prefeito de Porto Alegre a mulher de terninho vermelho, calça preta e cara de
desquitada de antigamente que, com aquele andar de John Wayne, zanza pelas ruas
repetindo o grito de guerra: “Foi golpe!”
Apesar do juízo avariado, nem ela vai querer que lhe devolvam o Brasil
que destruiu. Só exigirá as chaves do Palácio do Planalto e do Palácio da
Alvorada. Os filhos do prefeito da capital gaúcha poderão livrar-se sem
dificuldades da visitante. Bastará pedir-lhe que mostre o certificado de
deposição arbitrária com as assinaturas de pelo menos três golpistas de alta
patente — todas com firma reconhecida em cartório — e presenteá-la com um
exemplar da Constituição.
PITACO DO BLOG CHUMBO GROSSO: - EXISTEM
DOIDOS INGÊNUOS E AQUELES QUE SE FAZEM DE DOIDOS...
Um comentário:
E aí, Guerrilheiro? Jà jogou o jogo Legado do PT?
Eu joguei essa porra!
http://amarretadoazarao.blogspot.com.br/2017/01/legado-do-pt-o-jogo-da-memoria-da.html
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