sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

 



Todas as eleições presidenciais desde a redemocratização foram vitais e colocaram a sociedade diante de escolhas difíceis. Não será diferente agora. Mas, neste ano, há uma diferença importante. O próprio fundamento da Constituição estará em jogo. Se o atual presidente conseguir permanecer no posto, há o risco de que os seus ataques à democracia saiam fortalecidos. Desde que a reeleição foi introduzida, todos os presidentes conseguiram renovar seus mandatos, beneficiando-se da máquina pública. Apesar da baixa popularidade (a rejeição ronda os 60% dos eleitores nas principais pesquisas), Bolsonaro mantém o apoio de cerca de um quarto do eleitorado. Ele tem chances reais de se reeleger.


Até o momento seu ímpeto golpista foi contido pelo Supremo Tribunal Federal, por meio de inquéritos que investigam as milícias digitais bolsonaristas, os atos antidemocráticos e a interferência na Polícia Federal. O cerco judicial, até o momento, conseguiu limitar os ataques à democracia, freando o financiamento dos seus autores e bloqueando a monetização da indústria de fake news.


Mas isso não significa que a possibilidade de uma ruptura possa ser descartada. O presidente tem agido para minar as instituições, mesmo com os obstáculos que enfrentou. Pesquisadores da FGV, incluindo o professor da FGV-Direito Oscar Vilhena, apontam que o presidente usou em seu mandato expedientes para erodir a democracia e a institucionalidade. Entre eles, abusar do uso de normas infraconstitucionais, como decretos e medidas provisórias, além de minar por dentro órgãos de Estado. Faz parte dessa estratégia asfixiar entidades com cortes de verbas (como acontece na Educação) e subvertê-las por meio de dirigentes que se posicionem de forma oposta aos seus próprios princípios. Nesse último caso, os exemplos mais cabais são a indicação de Sérgio Camargo para a Fundação Palmares (que se volta contra a defesa dos negros e a luta por mais diversidade) e a de Ricardo Salles para o Ministério do Meio Ambiente (o ex-ministro desmontou os órgãos de fiscalização e é investigado até por favorecimento de quadrilhas de desmatamento ilegal). Isso pode se agravar num eventual segundo mandato.

A pandemia também serviu de pretexto para Bolsonaro tentar subtrair poder de prefeitos e governadores e para a ocupação militar do Ministério da Saúde, com consequências nefastas. Com a explosão dos casos da variante ômicron (não devidamente captados pelo apagão digital na pasta, mais um desmanche conveniente), o chefe do Executivo volta a usar o risco de lockdown como forma de atacar os gestores locais, a ciência e as autoridades sanitárias. Não aprendeu nada com a doença, continua investindo contra a vacinação e permanece ignorando a tragédia de mais de 620 mil mortos. “A ômicron não tem matado ninguém. Dizem até que seria um vírus vacinal. É bem-vinda”, declarou em mais uma frase repugnante, ao mesmo tempo em que criava obstáculos para a imunização das crianças. Se permanecer no Planalto, o combate à Covid e a novas ameaças globais à Saúde, já previstas pelos especialistas, será ainda mais difícil.


Além de não combater a doença, o presidente enxergou nela a oportunidade de debilitar a democracia. “A nova ditadura não é de uma hora pra outra, vem aos poucos. Vai tirando pedaços da sua liberdade aqui e acolá. E quando você vê, está até a cintura na areia movediça, não tem como sair mais”, afirmou na última segunda-feira, afrontando as medidas de restrição social para combater a doença que provavelmente serão novamente necessárias. Tentava reproduzir pela enésima vez a parábola orwelliana da ameaça representada pela implantação de um hipotético regime esquerdista, mas traiu suas próprias aspirações. Na prática, parecia descrever a sua própria tática para assaltar o Estado, que tem cada vez mais os órgãos de controle aparelhados e desvirtuados – o que ocorre até com a Polícia Federal, órgão vital que teve sua cúpula removida para seguir fielmente os interesses pessoais do presidente.


Acuado pela corrupção no governo, exposta especialmente pelas compras fraudulentas de vacinas no Ministério da Saúde, o presidente tem negado até que o combate à corrupção tenha sido sua bandeira para chegar ao poder: “Eu não apareci em 2018 e falei que sou a favor da Lava Jato e vou combater a corrupção. Não foi isso. Minha história começa há muito tempo”. É mais um embuste. Todos se lembram das cenas de Bolsonaro tentando assediar o então juiz Sergio Moro em um aeroporto em 2018. As manifestações anticorrupção turbinadas pela Lava Jato foram o principal laboratório para a cristalização do bolsonarismo. O atual presidente usou o movimento para se legitimar como candidato. Eleito, convidou o próprio Moro para seu ministério, para em seguida isolá-lo e operar na surdina para desmontar a operação. Com isso, conseguiu enredar os órgãos de controle para proteger os grupos fisiológicos capturados no Petrolão e no Mensalão que são sua principal base de sustentação no Congresso, além de impedir as investigações sobre os crimes de rachadinha no seu clã. O presidente não vai abrir mão dessa blindagem facilmente. E tem se esforçado para isso.


O maior movimento coordenado por ele até o momento para se perpetuar no poder e melar as eleições ocorreu no Sete de Setembro, quando mobilizou manifestações em Brasília e São Paulo e afirmou que não aceitaria mais as determinações do ministro Alexandre de Moraes – o juiz do STF está à frente dos principais inquéritos contra o mandatário e seus apoiadores. Desde então, Bolsonaro precisou recuar em suas investidas para não abrir espaço a um processo de impeachment e nem atiçar uma reação popular que seria fatal para ele. Um triunfo eleitoral em outubro, ao contrário, seria assumido imediatamente como uma revanche e um sinal verde para seu projeto autocrático.


Para isso acontecer, Bolsonaro tenta reverter sua impopularidade desesperadamente. Já faz isso por meio de programas eleitoreiros, feitos improvisadamente driblando o teto de gastos. É o caso do Auxílio Brasil, sucedâneo do Bolsa Família, empacotado para ele tentar aumentar sua penetração no Nordeste, região em que ainda é largamente rejeitado. Com a ajuda do Centrão, tenta também irrigar inúmeros projetos paroquiais e eleitoreiros espalhados pelo País por meio do orçamento secreto, uma aberração introduzida pelos aliados no Congresso para subverter a vontade popular, comprar apoios políticos e fortalecer os caciques que aderiram ao seu projeto de poder.


Mesmo assim, esse plano enfrenta percalços. A economia, que será vital para o pleito, é plenamente desfavorável ao mandatário. Pesarão contra ele em outubro uma inflação de dois dígitos, altos índices de desemprego e risco de estagflação. O Banco Mundial acaba de revisar sua previsão do crescimento do Brasil este ano, de 2,5% para 1,4%. Ainda assim, a instituição é bem mais otimista do que consultoras e bancos brasileiros, que já preveem estagnação ou mesmo um PIB negativo até o final do ano. Mesmo a previsão positiva do Banco Mundial reflete a menor taxa de crescimento entre os 18 países emergentes analisados. Considerando 28 economias da América Latina e Caribe, o Brasil deve superar apenas o Haiti. É um péssimo prognóstico para um governo que vem anunciando desde o início uma época de prosperidade, mas até agora só entregou resultados pífios e recessão. Nem no seio do governo esse malogro passa em branco. Em sua justificativa para o estouro da meta de inflação em 2021 (10,06%), o próprio presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, elencou o descontrole fiscal como uma das causas. Entre economistas, não restam dúvidas. A crise econômica no Brasil foi fabricada pela incompetência do próprio governo, apesar dos truques retóricos de Paulo Guedes, que são recebidos cada vez com mais tédio e impaciência por empresários e agentes econômicos. Se o mandatário continuar no poder, esse cenário não pode ser revertido —­­­ é o cálculo que todos começam a fazer.


Apesar disso, há chances reais de o mandatário garantir mais quatro anos no Planalto. Analistas apontam as particularidades do próximo pleito, em que o antipetismo ainda pode jogar um papel relevante, beneficiando o atual morador do Palácio do Alvorada. “Desde o período da redemocratização, a gente nunca teve um presidente que afrontasse tanto as instituições, mas é preciso levar em consideração outros fatores que podem impactar o atual cenário”, defende Bruno Soller, especialista em Comunicação Política pela George Washington University. Ele aponta que o líder atual nas pesquisas, o ex-presidente Lula, teve suas condenações anuladas por questões processuais, e não por ter sido isentado de corrupção. Isso pode pesar ao longo da corrida eleitoral. Esse é o cálculo que Bolsonaro fez ao facilitar a soltura e a reabilitação política de Lula. Mas pode ter errado na dose, criando um problema para si mesmo.


Mesmo com a eventual reeleição de Bolsonaro, cientistas políticos ponderam que as instituições já estão suficientemente maduras para suportar investidas autoritárias. “Não podemos esquecer que o País passou por dois impeachments nos últimos 30 anos, e foram respeitados todos os ritos do processo”, pontua Soller. “A eleição de um personagem político diferente de Bolsonaro não traz exatamente estabilidade política, econômica e social. Mas traria mais estabilidade do que o governo Bolsonaro. Ele alimenta crises com suas declarações e atitudes, defende o indefensável. Ele só para seus ataques quando se sente realmente ameaçado”, diz o cientista político Rubens Figueiredo. “O País passou nos últimos três anos pelo seu mais duro teste, com um governante que trabalha basicamente pela ruptura da democracia. Na outra ponta, ele tem um profundo desprezo por gestão. Tem sido um teste muito duro para nossa democracia. Espero que isso se encerre com o final do seu mandato”, acrescenta Felipe Santa Cruz, presidente da OAB.


As eleições são, de qualquer forma, a única chance de interromper o projeto autoritário de Bolsonaro. Por isso, até o processo eleitoral precisa ser protegido. O risco de subversão das eleições, com o questionamento das urnas eleitorais, pode aumentar à medida que o chefe do Executivo se sinta fragilizado ou veja as chances reeleitorais minguarem. Num primeiro momento, seu ataque às urnas, copiado de Donald Trump, foi superado pela “Declaração à Nação” escrita às pressas pelo ex-presidente Michel Temer após o Sete de Setembro. Mas isso não significa que as redes digitais, inclusive clandestinas e robotizadas, não serão sacadas durante a campanha, escapando à vigilância de Justiça Eleitoral. Para lembrar esse risco, o presidente fez novos ataques na última quarta-feira aos ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes do STF, acusando-os de ameaçar e cassar “liberdade democráticas” com o objetivo, segundo ele, de beneficiar a candidatura de Lula (o que motivou essa nova explosão foram as investigações contra ele e seus aliados). “É possível que vivamos um Sete de Setembro permanente até as eleições. Haverá muito investimento de recursos públicos nas campanhas eleitorais deste ano”, alerta a cientista política Juliana Fratini. Para ela, esta será uma campanha cheia de estereótipos e raiva.



Em outubro, o País terá um encontro com seu destino. Em pleitos passados, o País rejeitou o populismo de esquerda, referendou o Plano Real e chancelou o PT apenas quando este partido se mostrou moderado. A estabilização monetária, implantada pelo governo FHC, é um pilar da sociedade até hoje. Esses valores precisam ser preservados, assim como o espírito da Constituição de 1988. A substituição de Bolsonaro não é apenas um salutar movimento de alternância no poder. Ela é necessária para evitar que o bolsonarismo se constitua em movimento perene de ameaça à ordem institucional. Ainda que o presidente não tenha a mesma habilidade de Trump, ele pode exercer uma influência nociva antidemocrática. Bolsonaro não precisa apenas ser derrotado eleitoralmente. O mal que representa precisa ser extirpado, para que o País retome o curso do desenvolvimento e do amadurecimento democrático, um ideal que segue ameaçado por aventureiros e extremistas.






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