Assim como foi durante os dois anos e meio de governo Temer, o PT continuará sendo a principal força da oposição nos próximos quatro anos. Além de ter chegado ao segundo turno da disputa pela Presidência da República, com Fernando Haddad, o partido elegeu 56 deputados, o que por enquanto é a maior bancada da Câmara – o posto pode ser perdido se houver migração de parlamentares para o PSL, partido do presidente eleito Jair Bolsonaro –, e terá a quarta maior bancada do Senado, com seis senadores. Mas precisamos refletir sobre a legitimidade que o partido terá para exercer essa oposição, e como ela será feita a partir de 2019.
À legitimidade formal que o eleitor concedeu ao PT por meio do voto não corresponde uma legitimidade moral. Os escândalos de corrupção protagonizados pelo partido desde o mensalão, ainda no primeiro governo Lula, colocaram às claras o que hoje é a verdadeira natureza do partido. Todos os crimes cometidos pelos mensaleiros e pelos pivôs do escândalo do petrolão foram tramados em nome do partido, em seu benefício, e a estrutura partidária foi e tem sido usada para proteger essas pessoas – especialmente aquele que, hoje, comanda na prática o partido de dentro de uma cela. Isso nos faz concluir que o PT está longe de ser uma instituição que, por alguma infelicidade, tem membros que cometem crimes; a realidade é bem mais sombria: a corrupção e a mentira estão entranhadas no partido de tal forma que não seria nada descabido compará-lo a uma organização criminosa.
Isso não significa que não exista uma saída digna para o PT. Ela existe, sim – mas será difícil, dolorosa e exigente, algo que só lideranças corajosas poderão levar adiante. O passo inicial e necessário seria a admissão de todos os crimes cometidos pela cúpula do partido e em seu nome, o que até agora não foi feito. Em seguida, a aplicação do próprio estatuto do PT, que prevê a expulsão dos condenados com sentença transitada em julgado por crimes contra a administração pública (caso dos mensaleiros e, no futuro, do ex-presidente Lula quando os tribunais superiores terminarem de julgar seus recursos). E, por fim, o abandono da retórica segundo a qual o partido é vítima de perseguição política. Este roteiro, de três passos essenciais, ainda que não os únicos, representaria, de fato, um processo dificílimo, e haverá de desagradar muitos petistas, mas não aqueles realmente comprometidos com a ética e a democracia. Também pode irritar aqueles que, diante da ficha corrida do partido, prefeririam vê-lo extinto e diriam que não se pode ser leniente com os protagonistas de verdadeiros golpes contra a democracia. Todos esses olhares são compreensíveis, mas esta solução representaria um rompimento com o passado de corrupção desenfreada, ao mesmo tempo em que preserva um movimento político que conta com o respaldo de parte nada desprezível da população.
E, mesmo depois que todo esse processo de expiação fosse concluído, ainda restaria a dúvida: que tipo de oposição o PT seria? Haddad deu pistas contraditórias assim que se confirmou sua derrota. Na noite de domingo, prometeu ferro e fogo em um discurso sectário no qual não mencionou o nome de Bolsonaro uma vez sequer, nem se referiu aos quase 58 milhões de eleitores que escolheram o candidato do PSL. No dia seguinte, cumprimentou seu adversário nos melhores termos em sua conta no Twitter. “Presidente Jair Bolsonaro. Desejo-lhe sucesso. Nosso país merece o melhor. Escrevo essa mensagem, hoje, de coração leve, com sinceridade, para que ela estimule o melhor de todos nós. Boa sorte!”, escreveu Haddad, ao que Bolsonaro respondeu com um agradecimento, na mesma mídia social. Queremos acreditar que o partido siga a linha traçada na segunda-feira, mas também isso exigirá mudanças significativas na postura que o PT tem adotado até agora.
Querer o melhor para o país inclui, por exemplo, o compromisso com as instituições democráticas, o respeito à independência entre poderes e às determinações emanadas do Legislativo e do Judiciário. Na prática, significa abandonar discursos como o do “golpe parlamentar” para se referir ao impeachment de Dilma Rousseff e o dos “tribunais de exceção” para se referir a qualquer condenação judicial de seus líderes, especialmente do ex-presidente e atual presidiário Lula. E, aqui, o discurso de Haddad dá maus sinais. Se o candidato derrotado preferiu falar em “afastamento” de Dilma, foi mais explícito quanto à “prisão injusta do presidente Lula” e “a cassação do registro de sua candidatura, desrespeitando uma determinação das Nações Unidas”, falseando a verdade sobre o real alcance da tal “determinação” e mostrando seu desprezo pela Justiça Eleitoral e pela Lei da Ficha Limpa.
E quem está convicto de que “nosso país merece o melhor” será capaz de compreender a necessidade de certas medidas e apoiá-las, mesmo que venham do futuro governo Bolsonaro. Este será um teste de fogo para o petismo, que até hoje só soube fazer uma oposição parlamentar do tipo puramente destrutivo. Nos governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, o partido votou contra o Plano Real, as privatizações e a Lei de Responsabilidade Fiscal. Mais recentemente, colocou-se contra a reforma trabalhista e o teto de gastos – e ainda hoje o PT propaga mentiras sobre esta mudança. Ainda que em alguns casos se possa atribuir a postura a questões ideológicas sobre o papel do Estado, não há outra explicação que não a da sabotagem, a do “quanto pior, melhor”, para explicar a rejeição à estabilização econômica ou a medidas que buscam o equilíbrio das contas públicas.
Como o PT sabe que sua única chance de voltar ao poder é um governo desastroso de Bolsonaro, a grande questão que se coloca é: a legenda vai sabotar as medidas necessárias para tirar o país da crise ou vai colaborar no esforço de enfrentar problemas urgentes como o desemprego e o desequilíbrio fiscal, causado pelo inchado do Estado e por rombos como o da Previdência Social, apoiando tudo o que puder ajudar o Brasil a crescer? Em outras palavras, vai priorizar o país ou o próprio projeto político?
A democracia precisa da existência de grupos de oposição, especialmente no parlamento. A oposição de esquerda tem sido, muitas vezes, o alerta necessário quando governos em todo o mundo pendem para um liberalismo que deposita todas as suas fichas no laissez-faire e se esquece dos mais vulneráveis, aqueles que precisam que o Estado venha em seu socorro porque já nem têm mais forças para se levantar da sua situação de miséria. Um entendimento correto das políticas identitárias para minorias, plataforma que mais recentemente tem caracterizado a esquerda, também serve para lembrar que a democracia não é a ditadura da maioria. Mas tal oposição só pode ser feita por quem tiver legitimidade moral para tal, e tem de ser feita de forma responsável, pelo bem do país, não de forma a sacrificar o país pelo bem do partido. Hoje, o PT não cumpre nenhuma dessas condições, mas evoluir depende apenas de si. Se não for capaz disso, que tenha a decência de deixar o espaço para uma esquerda democrática, economicamente responsável, eticamente correta e comprometida com o respeito à dignidade humana. - Fonte: Gazeta do Povo -