LANÇADO NO ANO PASSADO EM CUBA E NESTE MÊS NO BRASIL, DIÁRIO INÉDITO DO GUERRILHEIRO CHE GUEVARA QUE RELATA PASSAGENS DE SUA VIDA E DA LUTA QUE LEVOU AO PODER FIDEL CASTRO, EM 1959.
"DIARIO DE UM COMBATENTE", abrange os fatos desde a chegada do iate Granma, em 2 de dezembro de 1956 a Cuba, até a vitória da revolução, em 1 de janeiro de 1959. Foi apresentado em ato do qual participaram a viúva do Che, Aleida March, e sua filha Aleida Guevara. O CHE NOS FAZ FALTA EM CUBA, COM SUA CAPACIDADE DE TRABALHO, DE PLANEJAR, DE CONVENCER AS PESSOAS. LEMBRAMOS QUE, EM TRÊS ANOS, INAUGUROU MAIS DE 30 FÁBRICAS E PROJETAVA OUTRAS 30, disse Oscar Fernández Mell, quem o acompanhou como médico e guerrilheiro durante toda a campanha em Cuba e no Congo (1965). Fernández Mell, de 80 anos, recordou que a época em que Che foi presidente do Banco Nacional - nos primeiros cinco anos da revolução - foi a "mais frutífera e gloriosa" da instituição. A pesquisadora María del Carmen Ariet explicou que Guevara foi um forte crítico dos países do bloco soviético, conforme o refletido no livro "Apuntes Críticos a la economía política", publicado em 2006. O presidente de Cuba, Raúl Castro, quem substitui o irmão Fidel, desde julho de 2006, impulsiona um programa de reformas para tornar eficiente o esgotado modelo econômico cubano, de inspiração soviética, tentando descentralizá-lo e terminar com o paternalismo estatal. O diário, é encerrado com a batalla de Santa Clara (280 km a leste de Havana) no final de dezembro de 1958. Fernández Mell aproveitou para refutar o que chamou de "DESVIO" HISTÓRICO, que atribui a Guevara "CENTENAS" de fuzilamentos de militares e policiais da ditadura de Fulgencio Batista (1952-58) na fortaleza de Cabaña, em 1959, depois do triunfo da revolução. O LIVRO FOI PREPARADO PELO CENTRO DE ESTUDOS CHE GUEVARA. Em dezembro DE 2011, o Centro publicou "El Pensamiento Filosófico", notas trabalhadas por Che durante 17 anos para a composição de um dicionário filosófico.
CENSURAR DIÁRIOS DE CHE É "ENGANAÇÃO", DIZ BIÓGRAFO
FLÁVIA MARREIRO
A supressão de trechos do diário de Che Guevara durante a guerrilha em Cuba, feita pelo centro de estudos sobre o argentino em Havana para a publicação de um livro, é uma "ENGANAÇÃO HISTÓRICA". Quem diz é o biógrafo de Che, Jon Lee Anderson, que teve acesso aos cadernos disponíveis - há tomos oficialmente desparecidos - para escrever o seu "Che Guevara - Uma Biografia", cuja primeira edição apareceu em 1997 e agora foi relançada em edição revista pela Objetiva. Ao menos dois trechos dos diários foram retiradas do "Diário de um Combatente", lançado no ano passado em Cuba e neste mês no Brasil, pela editora Planeta. São duas passagens em que Che executa pessoas durante a campanha para derrubar Fulgencio Batista em 1959. A edição foi preparada pelo Centro de Estudos Che Guevara em Havana, dirigido pela viúva do guerrilheiro, Aleida March, e cobre o período de dezembro de 1956 ao começo de dezembro de 1958 (não há os cadernos para o período de agosto de 1957 a abril de 1958). Um dos trechos censurados foi a execução de Eutimio Guerra, acusado de traidor pelo grupo de Che e Fidel Castro. "É lamentável. À lupa da história, a execução de Eutimio foi um momento superimportante. [...] Foi o tiro que demonstrava que a revolução era para valer", disse Anderson à Folha. "Não sei o que temem. Foi um crime? Não foi um crime. Isso é o que faz em uma guerra. Não é bonito, ninguém gosta, mas acontece. A partir desse momento, se endurece a revolução e aí se começa a usar a lógica clássica, severa das guerrilhas, de Cuba aos vietcongs. É assim." UMA NOTA DE "DIÁRIOS" AVISA QUE TRECHOS SERÃO SUPRIMIDOS POR CONTER JUÍZOS DE VALOR "CIRCUNSTANCIAIS" FEITOS PELO GUERRILHEIRO, NO CALOR DA BATALHA E ENTRE ATAQUES DE ASMA ENTRE 1956 E 1958. "Cuba não é como outros países. Um punhado de pessoas decide o que os demais vão saber", segue. "Esperava-se que 53 anos depois pudessem ser consequentes com a sua própria história. O bonito dos diários de Che Guevara é que mostram ele antes de ser homem público." O jornalista da "New Yorker" diz que "não sabia o que esperar" da edição preparada pelo centro cubano, mas diz que a operação de retirar trechos não chega a surpreender.Ele conta que até meados de 2000 os cubanos jamais haviam visto uma foto de Che Guevara morto na Bolívia, em 1967.
A SEGUIR, OS PRINCIPAIS TRECHOS DA ENTREVISTA QUE O ESCRITOR CONCEDEU AO JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO POR TELEFONE, SEXTA-FEIRA QUE PASSOU, DIA 11.05.2012.
FOLHA - "Diario de um Combatente" (Planeta, 2012), editado em Cuba e agora no Brasil, suprime algumas passagens, como a execução de Eutimio Guerra, acusado de trair os guerrilheiros, na comparação com o que o sr. cita dos cadernos em seu livro. Era esperado esse saneamento?
JON LEE ANDERSON - A verdade é que eu não sabia o que esperar. Até certo ponto, sim, era de se supor algo. É lamentável [as supressões]. À lupa da história, a execução de Eutimio é superimportante tanto para a radiografia, para a história da Revolução Cubana, a parte da guerrilha, como na parte que me concernia, que era a vida de Che Guevara. Era o primeiro traidor, foi desmascarado. Havia que justiçá-lo e fizeram. A morte dele, na prosa de Che publicada nos primeiros anos da revolução, serviu de parábola para a revolução. Neste texto, estava ausente o autor da morte de Eutimio. No que corresponde à parte interna da guerrilha, era o momento de dar o toque de seriedade, de assustar os guerrilheiros. Havia deserção, traição. Foi o fim de uma fase da guerrilha. Eram 17 homens na guerrilha, nada mais. Acabavam de receber Herbert Matthews [jornalista do "New York Times" que entrevistou Fidel quando o regime Batista dizia que ele estava morto], num golpe propagandístico que lhe serviu muito à incipiente revolução. Eles sabiam que estavam minados por dentro, que estavam praticamente liquidados. E, então, para além de saber se foi Che que atirou ou não, não sei o que temem. Ou seja, foi um crime ou não? Não foi um crime. Isso é que se faz nas guerras. Isso se contempla nas guerras. Não é bonito, ninguém gosta, mas é contemplado. É assim. A partir desse momento, endurece-se a revolução e aí se começa a usar a lógica clássica, severa das guerrilhas, de Cuba aos vietcongs. A morte de Eutimio Guerra, até certo ponto, era o tiro que mostrava que a revolução era pra valer.
FOLHA - Qual a importância dessas anotações?
ANDERSON - Quando tive acesso ao "Diário de um Combatente", ele estava sendo preparado para a publicação em Cuba. Esperava-se que, 53 anos depois, eles pudessem ser consequentes com sua própria história. O bonito desse diário é que é Guevara antes ser homem público, recém-convertido em guerrilheiro, havendo sido o estudante aventureiro, etc. Aí estão suas dúvidas sobre ele mesmo, sobre Fidel, sobre a revolução. Já sabemos como terminou a história, mas é tudo muito mais convincente e real se temos nas mãos um documento como esse. Nem tudo era bonito e polido. Não há que tirar nada de lá: lá está o Che sexual, severo, que duvidava, não completo nem como homem nem como revolucionário.
Há um fragmento sério que nunca foi encontrado. Mas o que eu pude ver era chave para entender, por um lado, o fortalecimento da corrente esquerdista, socialista da revolução cubana, o isolamento dos grupos mais burgueses. Por outro lado, a versão oficial foi escrita depois com a ajuda do próprio Che. Não é que haja contradições no essencial, mas há sutilezas, ingredientes. E como sabemos nós os escritores, tudo está no detalhe. É quase o único documento que tem detalhes. Há textos complementares que me ajudaram muito, os relatos um pouco menos oficialistas. Foram complementares.
FOLHA - Se já estava em seu livro, se já era de conhecimento público, por que censurar algumas partes?
ANDERSON - Não sei. Olha, Cuba não é como os outros países. Um punhado de pessoas decide o que os demais vão saber. Vivendo em Cuba, ouvia-se falar que havia um assassino em série. Como há um serial killer? Fiquei com medo. Era uma gangue que ia matando outros garotos, lançando-os fora dos ônibus e isso nunca vinha a público. Essa lógica valia para isso e valia para outras coisas. Você me faz uma pergunta lógica. A única explicação, a única resposta é a síndrome de bolha, de isolamento. Por mais que vivamos numa época de internet e tudo mais, obviamente a maioria dos moradores da ilha não tem acesso a isso. Por isso, os governantes pensam que ainda podem fornecer pílulas de informação, com base na decisão de comitês. Até o ano 2000, nenhum cubano na ilha tinha visto imagens do Che morto. Não se podia trazê-la à ilha, não se podia mostrar. Não estava publicado em nenhuma parte, mas pude saber disso no meio da apuração. Amigos cubanos iam à minha casa e um deles ficou chocado a ver a foto [de Che morto]. Todo mundo já tinha visto a foto, escrito ensaios sobre ela 35 anos antes e nenhum cubano tinha visto. Por quê? Perguntei há várias pessoas, inclusive a gente séria do governo, revolucionária entre aspas, e o que eles diziam era: se não o vê morto, segue vivo. Até esse extremo chegaram em algum momento para tratar de moldar a opinião. Todos os governos fazem isso. Cuba não é uma exceção. O que acontece é que por ser ilha e uma sociedade tão controlada há mais de cinco séculos, dizem: "Está no livro de Anderson, mas se nos perguntam diremos que era uma mentira e pronto". Quem vai comparar? Uns poucos. E que importa? Para o grande público, é o que vale.
FOLHA - Uma nota do livro explica que "julgamentos de valor circunstanciais" de Che também foram retirados da publicação. O que diz?
ANDERSON - Então as opiniões circunstanciais não importavam... Por que não importava? Porque logo a história mudou? Se estão polindo, tirando comentários circunstanciais, é uma enganação histórica, simplesmente. Incrível.
FOLHA - Por que o sr. resolveu fazer uma edição revista de "Che Guevara: uma Biografia"?
ANDERSON - Fiz há dois anos e foi saindo em diferentes idiomas. É uma nova edição, pelo menos em inglês, com aperfeiçoamento do texto desde meu ponto de vista. Explico: quando fiz o livro, tiraram-no das minhas mãos e ele foi diretamente para as ruas praticamente sem edição. Quando digo sem edição, é que não tive tempo de corrigir. Estava um pouco consternado. Vendia como pão quente e as várias editoras foram publicando à sua maneira e com más traduções. Não foi o caso do Brasil, porque eu gostei muito da edição brasileira. Mas o texto em inglês seguia me incomodando, ainda que ninguém o criticasse muito. Sempre pensei que ele estava um pouquinho grande. Essa noção de voltar a editar eu sempre tive, antes de mais nada para eliminar umas cem páginas, porque pensava que era grande demais. Voltei a olhá-la, com essa ex-editora minha na "New Yorker", muito boa. A verdade é que não saiu menos texto, senão algo mais. A versão em inglês tem umas 60 páginas a mais, uma coisa assim. Não é que acrescentei tanto. Fizemos algumas mudanças, ajustes estilísticos. Voltamos a olhar tudo, notas de rodapé, atualizá-las, revisar o tom que havia usado em um momento dado. Usamos já um tom menos noticioso e mais para histórico. Além do mais, tive certos esclarecimentos, mais testemunhas em dois, três casos ou mais. Algumas pessoas eu não tinha chegado a conhecer, que citava de segunda mão, e logo se apresentaram. Nesses casos, pude mudar. Foi como uma lipoaspiração, uns retoques. Tirei um pouco de barriga e ajeitei o nariz. A verdade é que tive de convencer os editores, e nem todos publicaram de novo, porque é um custo voltar a traduzir. Muitos estão muito bem com a edição que têm e não entendiam minha insistência em publicar algo não tão distinto, mas melhorado. Brasil, Inglaterra e EUA tem a versão melhorada. Eram doze anos depois de lançado, poderia ter esperado 20, mas fiz agora.
FOLHA - Como vê a situação da Venezuela com a doença de Chávez? E Cuba?
ANDERSON - Não quero ser mais um que lança rumores, mas há indícios: o câncer que voltou a se apresentar, sua preocupação pública [de Chávez], o silêncio, esse fato de ter nomeado esse conselho [de Estado] demonstra a seriedade do assunto, além do hermetismo ao redor da questão. Tudo indica que ele está muito doente, e que estamos diante de uma conjuntura importante na história venezuelana. Se ele deixa o poder ou morre, já não é Chávez. E se isso acontece, é o fim do chavismo e da revolução bolivariana? Há o presidente da Assembleia, Diosdado Cabello, que poderia ser um sucessor de Chávez. Tenho uma impressão que houve um acordo entre Chávez e Diosdado, como Blair e Brown. Diosdado é um tipo tão cinzento que não se sabe como medi-lo. Tenho entendido que é revolucionário com r minúsculo, daí poderia sair uma linha mais pragmática ou mais corrupta, talvez, à diferença do [vice-presidente] Elias Jaua e do [ministro da Economia] Jorge Giordani, que são mais "socialistas utópicos". Maduro é mais como Chávez, é um homem simpático, brincalhão como Chávez. Não sei é se consegue unir a todos, se é visto pelos chavistas como alguém que tem estatura para substituir Chávez. Se Chávez não chega à eleição, quem sabe como vai reagir o povo venezuelano? Em quem vão depositar as esperanças? [O candidato da oposição, Henrique] Capriles quer mover seu partido de centro-direita para um campo onde possa ganhar. Quem sabe, vamos ver. Mas há uma situação criada: depois de uma década de chavismo, o que há é uma população pobre, muito ideologizada e com expectativas muito altas em uma sociedade com problemas de segurança, de bem-estar e educação ainda a suprir. Não vai ser bonito. E sem falar da ilha... Se é Diosdado quem assume não sei se seguirá a mesma política.