Percival Puggina
O compositor Chico Buarque, sua namorada, um advogado argentino e uma ativista italiana estiveram, na última terça-feira, 12 de dezembro, com o Papa Francisco. Interessei-me. O que teria levado Chico a procurar Francisco? Para qual esquina da vida tão distintas biografias convergiriam?
Chico sobraçava um volume de 100 páginas que os portadores exibiram para provar o que denominam judicialização seletiva da política na Argentina, no Equador e no Brasil e o consequente comprometimento de suas democracias. Por “judicialização seletiva da política”, em linguagem menos pedante, se entenderia, no caso brasileiro, que o mártir Lula, aquele santo em vida, está preso injustamente por conta de um suposto cambalacho que derrubou a hegemonia esquerdista no país.
Eu retornara de Cuba havia quatro meses quando, em 18 de março de 2003, ocorreram as violentas ações policiais e judiciais que ficaram conhecidas, no país, como a Primavera Negra. Foram presos 75 dissidentes, defensores de direitos humanos e jornalistas independentes. Entre eles estavam listadas pessoas com quem me havia encontrado em novembro de 2002, colhendo informações para a primeira edição de meu livro Cuba, a Tragédia da Utopia, que viria a ser publicado em 2004. Foi com lágrimas nos olhos que vi condenada a incríveis 20 anos de prisão, minha brava amiga de cabelos brancos, a economista Marta Beatriz Roque Cabello, com quem ainda hoje me correspondo regularmente. As penas variavam entre 15 e 28 anos de prisão em regime fechado. O rigor das ações e sanções chamou a atenção mundial e um angustiante terror se abateu sobre a população.
Duas semanas mais tarde, a 2 de abril, armados de uma faca e um revólver, um grupo de 11 jovens, sem que ninguém causasse ou sofresse um arranhão, abordou uma lancha de navegação costeira e determinou que rumassem para os Estados Unidos. Trinta milhas adiante, ficaram sem combustível e foram rebocados para o porto de Mariel. Nove dias mais tarde, haviam sido julgados, recorrido das sentenças e, três deles, executados por pelotão de fuzilamento. A estes, posteriormente, Fidel, se iria referir de modo depreciativo como “los três negritos”... Aos demais, prisão perpétua. Não houve tempo, sequer, para os familiares serem comunicados da execução das sentenças, cumpridas na madrugada. A brutalidade das ações e a desproporção das penas chocou a opinião mundial. Antigos apoiadores de Fidel, como o português José Saramago e a chilena Mercedes Sosa proclamaram seu rompimento com o regime. “Até aqui eu fui” escreveu Saramago, que suportara muito bem as 20 mil sentenças de morte até então cumpridas pelo regime. As três últimas, porém, foram as gotas que lhe encheram o tolerante copo.
É claro que a reação internacional exigia resposta rápida. Foi assim que, mundo afora, seguindo a velha rotina, centenas de “intelectuais” partiram em defesa do regime e de suas ações. No clamor dos fatos, no dia 1º de maio, durante as habituais celebrações realizadas na Praça da Revolução, foi lido um manifesto com o título “Chamado à consciência do mundo” redigido em defesa de toda aquela brutalidade, descrita como ato de soberania a exigir respeito. Entre os mais de 300 signatários, contam-se Adolfo Perez Esquivel, Rigoberta Menchú, Gabriel Garcia Marquez, Eduardo Galeano, o padre sandinista Ernesto Cardenal, o cantor Harry Belafonte, e, claro, o inexorável humanista e indefectível democrata e defensor dos direitos humanos, Chico Buarque de Hollanda.
Pois foi esse cidadão brasileiro que recebeu de Sua Santidade o privilégio de uma audiência, havida na condição de paladino do Direito, da Justiça, e porta-voz de nobilíssimos anseios democráticos. A ambos, olhando os restos do regime dos Castro, se pode indagar com versos do próprio visitante: “O que cantam os poetas mais delirantes, o que juram os profetas embriagados, o que está na romaria dos mutilados, o que está na fantasia dos infelizes, o que está na dia a dia das meretrizes, dos bandidos, dos desvalidos” cubanos?
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