Josias
de Souza
A esperteza de Joesley Batista era tamanha que acabou engolindo o dono. O empresário conseguiu a proeza de se autogrampear num diálogo-pastelão com seu executivo Ricardo Saud. A conversa revela uma trama na qual o procurador-geral da República Rodrigo Janot aparece no papel de bobo e ministros do Supremo Tribunal Federal são associados a trambiques. Repassada à Procuradoria por descuido, a gravação deve levar Janot a fazer por pressão o que não fez por precaução. Premiados com uma imunidade penal inédita, os delatores do Grupo JBS estão agora a um passo da cadeia.
Batizada de ‘Piauí Ricardo 3’, a gravação foi feita em 17 de março de 2017. Chegou à Procuradoria às 19h da última quinta-feira. Deveria conter um diálogo comprometedor de Ricardo Saud, ex-executivo da J&F, controladora da JBS, com o senador piauiense Ciro Nogueira, presidente do PP. Entretanto, ao escutar o áudio, no domingo passado, uma procuradora da Lava Jato se deparou com o diálogo desqualificado em que Joesley e Saud atiram contra os seus próprios interesses e acertam uma flechada no pé de Janot. De quebra, cutucam togas do STF.
O conteúdo da gravação, por inusitado, levou Janot a concluir que Joesley e Saud não sabiam que se auto-grampeavam. Um nome salta do diálogo como pulga no dorso de um vira-lata: Marcelo Miller. No dia em que a gravação foi feita, Miller era procurador da República. Integrava o time de Janot na Lava Jato. A certa altura, Saud diz a Joesley que estava “ajeitando” as coisas com Miller. O auxiliar de Janot inclusive já havia remetido uma mensagem sobre a Operação Carne Fraca para Francisco de Assis e Silva, outro executivo da JBS que se converteria em delator.
Havia mais e pior: a conversa entre Joesley e Saud deixava claro como água de bica que a dupla contava com os bons préstimos de Marcelo Miller para obter vantagens de Rodrigo Janot na celebração de um acordo judicial. Em troca, Miller seria admitido como sócio num escritório de advocacia. Dez dias depois da gravação, o Grupo JBS foi reconhecido como colaborador da Lava Jato. Os delatores obtiveram a premiação máxima prevista em lei: a imunidade penal.
Em 5 de abril, Marcelo Miller pediu exoneração do cargo de procurador da República, um dos contracheques mais cobiçados do serviço público. Dias depois, o doutor apresentou-se ao Ministério Público Federal como sócio da banca de advogados Trench, Rossi e Watanabe, que havia sido contratada para negociar um acordo de leniência em nome da J&F, a holding da JBS.
No ofício que redigiu nesta segunda-feira para comunicar as novidades ao ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no Supremo, Janot anotou: “Essa sucessão de datas é importante porque sugere a participação de então membro do Ministério Público Federal em atividade supostamente criminosa e/ou de improbidade administrativa.”
“Além disso”, prosseguiu Janot, “há trechos no áudio que indicam a omissão dolosa de crimes praticados pelos colaboradores, terceiros e outras autoridades, envolvendo inclusive o Supremo Tribunal Federal.” Não é só: “O colaborador Ricardo Saud […] apresentou anexo declarando possuir conta no exterior, mais precisamente no Paraguai, a qual não havia sido informada.”
Diante de um encadeamento de fatos tão perturbador, não restou a Janot senão abrir um procedimento para reavaliar o acordo de delação da JBS, especialmente no que diz respeito a Joesley Batista, Ricardo Saud e Francisco de Assis e Silva, o executivo que recebera o relatório do procurador infiltrado sobre a Operação Carne Fraca.
Constrangido pelos fatos, Janot concovou uma entrevista coletiva para o começo da noite. Antes, esteve no Supremo para antecipar seus passos ao relator Fachin e à presidente da Corte, ministra Cármen Lúcia. Na conversa com os repórteres, o procurador-geral foi econômico. Contou o pecado sem dar nome aos pecadores. Transferiu para o Supremo a decisão de divulgar o áudio —mantendo em segredo, se Fachin achar que é o caso, trechos sobre a vida privada dos personagens.
Janot poderia ter evitado o constrangimento. Não é de hoje que a migração de Marcelo Miller da força-tarefa da Lava Jato para um escritório privado desperta suspeitas. Críticos da atuação da Procuradoria —como o ministro Gilmar Mendes, do Supremo— já falaram publicamente sobre a desconfiança de que o ex-auxiliar de Janot orientou Joesley na preparação do grampo que captou a voz de Michel Temer no subsolo do Jaburu.
O próprio Temer, numa manifestação feita em junho, citou Marcelo Miller e os “milhões” que ele recebeu para mudar de lado. Insinuou que Janot poderia ser beneficiário da operação (veja no vídeo abaixo). O procurador-geral rechaçou a suspeita. Sustentou a tese segundo a qual Miller atuara apenas na negociação do acordo de leniência da JBS. Nessa versão, ele nada teria a ver com a colaboração premiada da Lava Jato. Janot não imaginava que seria compelido a dar o braço a torcer graças a um diálogo desastrado dos delatores que ele premiou.
Um repórter perguntou a Janot: Não fosse pela imunidade penal concedida aos delatores, caberia um pedido de prisão? E o procurador-geral: “Tudo é possível. Vamos ver como é que fica a avaliação dessa revisão do acordo. Eles têm imunidade uma vez que o acordo esteja hígido. Se o acordo ruir —total ou parcialmente—, essa essa imunidade não existirá mais.” Comparado com aquele procurador-geral que defendia com tenacidade a premiação dada à JBS, este Janot da coletiva estava irreconhecível.
Janot empenhou-se em esclarecer durante a entrevista que a “provável” revisão da colaboração da JBS levará à rescisão parcial ou total dos benefícios concedidos aos delatores. Mas o Estado não deixará de aproveitar as provas obtidas por meio das delações. Assim prevê a lei. O que o procurador-geral não disse é que, do ponto de vista político, suas flechas perderam o curare, veneno que traziam na ponta. A apenas 13 dias de transferir seus ''bambus'' à sucessora Raquel Dodge, Janot converteu-se de arqueiro em alvo.
Michel Temer, seus advogados e os aliados do governo passaram a enxergar o desgaste do procurador-geral como uma oportunidade a ser aproveitada. Avalia-se no Planalto que ficou mais fácil derrubar na Câmara a segunda denúncia que Janot planeja oferecer contra o presidente.
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