Zé das Couves
O som do despertador
invade o quarto, BESTILDE ASSADA não se
incomoda, perdida em pensamentos permanece olhando a rua. Vê quando seu irmão
chega das festas natalinas e estaciona,
ao descer ele a vê na sacada acena e entra. BESTILDE
ASSADA vai até o banheiro e constata o efeito da noite mal dormida, nada que
um bom óculos escuros não dê jeito. Seu irmão FOLOGÊNIO UTIGUAÇU está na sala e a recebe
com um abraço. Mesmo com a insistência do irmão e de CHUPICLEIDE
sua
fiel ajudante na organização da casa, BESTILDE ASSADA não come nada,
quer apenas fazer o que tem para fazer e que este dia termine. No carro FOLOGÊNIO UTIGUAÇU começa a numerar
as qualidades de VERDUGO, BESTILDE agradece em pensamento pelos óculos, assim pode
disfarçar seu descontentamento com o irmão. Ela mais que ninguém conhecia as
qualidades de VERDUGO, afinal foi casada
com ele por dez anos, mais que suas qualidades conhecia seus defeitos mas quem
lembra deles nessas horas? FOLOGÊNIO estaciona em frente ao longo
muro branco, BESTILDE olha ao redor e
reconhece alguns familiares e amigos de VERDUGO
mais
o que chamou mesmo a sua atenção era o número de pessoas que passava pelo portão, e
se pergunta se todas essas pessoas vieram se despedir do seu marido. Algumas delas
se aproximam dando-lhe os pêsames, BESTILDE ASSADA permanece em
silêncio. Entra na sala
em que o marido está sendo velado, se aproxima do caixão e mais uma vez
agradece pelos óculos, não consegue acreditar que aquela coisa com um cheiro
repugnante é o seu marido, vinte e sete anos de diferença e nunca o vira tão
frágil. Olha as mãos cruzadas sobre o busto e vê a aliança, diferentemente das
outras pessoas VERDUGO a usava na direita,
ela a puxa e se surpreende com a facilidade com que ela sai, na mão esquerda
está um anel 18k cravejados de diamantes e com uma linda
pedra safira azul, ela tenta tirá-lo ao contrário da aliança esse
não sai, até parece que a mão inchou de repente. FOLOGÊNIO UTIGUAÇU vendo o esforço da
irmã oferece ajuda: -Não. Era importante pra ele, talvez seja sua vontade levá-lo.
Durante o sepultamento lindas palavras são ditas, umas em homenagem a VERDUGOoutras de conforto
a jovem viúva. Todos já tinham ido embora. Só ele e ela observam os coveiros
terminarem seu trabalho: -Vamos BESTILDE, já é tarde você
precisa comer e descansar. -Pode ir, eu vou de táxi. FOLOGÊNIO conhecia bem a irmã
para saber que não adiantava insistir. Sozinha ela se aproxima da lápide, tomando
cuidado para não pisar na terra ainda fofa, e inicia um monólogo: -Dez,
dez anos da minha vida esperando por esse momento. Dez anos esperando para me
ver livre de você. Não preciso mais abusar da maquiagem para disfarçar as
marcas, não preciso mais fingir felicidade para sua família e amigos nem
inventar desculpas para fugir do meu irmão e de suas perguntas de como vai
minha vida. Agora eu sou livre. MELHOR AINDA: LIVRE, JOVEM E RICA. Sabe o que é mais
irônico nisso tudo? você me mantinha presa, me vigiava e a menor suspeita de
que estava olhando para os lados me espancava, tudo isso por medo de ser
traído. Nunca que você, um machista orgulhoso iria permitir umas coisas dessas.
Mal sabia você que durante esse tempo todo, sua cama, que você fez questão de
importar, vem sendo o lugar onde sou mais feliz, o lugar onde a CHUPICLEIDE me faz sentir o
que você nunca foi capaz. Você não imagina o quanto rimos de você naquela cama.
Por que você acha que eu insisti tanto para trazê-la para trabalhar
em casa? Como queria ver sua cara agora. BESTILDE
ASSADA gargalhava histericamente: -Nojo, tudo que sinto por você é nojo. Numa
tentativa de chutar a lápide ela tropeça e derruba os óculos em cima da terra
fofa, tenta pegar e fica com o salto preso na terra, tentando se soltar se
desequilibra e fica agora com os dois pés presos e sente afundar ainda mais.
Grita por socorro, olha para os lados e não vê ninguém, desesperada começa a
cavar. E não percebe que está sendo observada
até ouvir o barulho da bengala. BESTILDE se levanta e vê um
idoso de terno todo branco em cima da lápide vizinha: -Por favor, me ajude.
Meus pés estão presos, chame alguém, por favor. O idoso sorri, mas o olhar é
frio, maldoso. Ela sente um arrepio pelo
corpo todo. –Por que ajuda menina? Você não precisa de ajuda. CHEGOU
A HORA DE PAGAR SUAS DÍVIDAS. BESTILDE
ASSADA
não tem tempo de perguntar do que
ele está falando, sente algo no tornozelo. Mãos sujas, geladas,
inchadas e com um anel de ouro cravejados de brilhantes e uma safira azul, a
está puxando. Em pânico ela se debate e grita por socorro:
-Não adianta gritar menina. Ninguém virá. -Não deixa ele me levar, por favor,
eu não fiz nada, eu não fiz naaadaaaaaaa. -Não fez nada? Hora menina, tente se
lembrar. –Por que eu o trai? Eu o trai, mas o que ele fez comigo por dez anos
foi castigo suficiente. Me tira daqui. BESTILDE já tem terra até
os joelhos. -Você acha mesmo que essa é minha preocupação? Quem traiu quem ou
porque alguém trair? Há minha menina, não, claro que não, isso é conversa para
comadres e eu tenho mais o que fazer. -Eu faço o que você quiser, dou o que
quiser, mas não me deixa morrer aqui, não deixa ele me levar. -Não há nada que
você possa fazer e a única coisa que poderia me dar já me pertence. -Pelo amor
de Deus, tenha misericórdia. O idoso fica ereto e larga a bengala, seus olhos
adquirem um tom vermelho, o vapor sai por todo o seu corpo e quando fala é como
se mil vozes falassem junto. -Não coloca o sujeito no meio. Quando em uma de
suas tórridas tardes de amor não foi a ele que você prometeu a sua alma. Já com
terra na altura dos seios ela chora desesperada. -Foi uma brincadeira, sem
querer, não falei por mal. -Devia ter cuidado com o que fala. Nunca se sabe
quem pode estar ouvindo. Aos poucos o idoso volta a sua frágil aparência. -Esse
foi um dos meus melhores negócio, você vendeu sua alma para ficar com sua doce CHUPICLEIDE e com todo o
dinheiro do seu marido e o teve por 48 horas... Mas teve e seu marido vendeu a
dele para passar a eternidade com você. Todos tivemos o que queríamos. Viu só?
Não sou tão mal assim. Com a terra prestes a cobrir todo o rosto BESTILDE ASSADA ainda
o vê se despedir. -Te vejo em casa, minha menina. E com uma piscadela o frágil
senhor bate a bengala no chão, um buraco se abre e em meio a fumaça e uma luz
alaranjada desaparece. FOLOGÊNIO UTIGUAÇU
ainda procurou pela irmã mas acabou por aceitar, que tomada pela dor da
perda BESTILDE tenha saído sem
rumo, FOLOGÊNIO
nunca
se perdoou por tê-la deixado sozinha. Muitos anos depois pessoas relatam que ao
visitar os túmulos de seus entes queridos ouvem o que parece um choro de
mulher, seguido de uma gargalha de homem...
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