sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

A SEGUNDA MORTE DE FIDEL




José Paulo Cavalcanti Filho

Velha regra da cavalaria manda que cesse a peleja quando o combatente não pode mais lutar. Por essa razão nossos mortos são preservados, sempre. Dado não poderem se defender. Cabe à história julgá-los. Em palavras de Álvaro de Campos (“Ode Triunfal”), com Todo o passado dentro do presente/ E todo o futuro já dentro de nós. Seja como for, há hoje dois Fideis à espera de sepultura.

O primeiro é o da Revolução. Ele e Che Guevara eram como a vida real e o sonho. Andando sempre juntos. Com o Che no papel de Quixote. Diferente do companheiro, findou seus dias na Bolívia. Em 1967. Abandonado e só. Tentando reproduzir a Sierra Maestra de Cuba. Ainda hoje permanecem nas nossas retinas aquela foto de jornal, corpo vazado por balas e olhos negros abertos. Como quem procura o horizonte inatingível. Enquanto Fidel parecia mais um Sancho Pança. Só que, diferente do espanhol, era também capaz de sonhar sonhos grandiosos.

Esse primeiro Fidel foi o que derrotou Batista. O que deu rosto aos desejos de independência da sua gente. O que foi fiel a suas crenças sociais. O que sobreviveu a um embargo comercial insensato dos Estados Unidos. Sua trajetória se confunde, por tudo, com a luta libertária dos povos da América Latina. Esse Fidel morreu faz tempo. O comandante e seu sonho. Foi sua primeira morte.

O segundo Fidel é aquele que não compreendeu bem os limites do seu papel. Convertendo-se em verdugo do seu próprio povo. E sem conseguir, ou querer, transformar a Revolução em um arremedo de democracia. Não há ditaduras de esquerda ou de direita, meus senhores. Existem apenas ditadores. Como ele foi. Pouco antes de transferir o poder a seu irmão Raul, fiquemos só num exemplo, ele puniu 78 intelectuais com penas de até 28 anos de prisão. Por delitos de opinião. E outros 3 condenou à morte. Fuzilados como Guevara. Sacco e Vanzetti caribenhos. Pobres cubanos que apenas queriam escapar da ilha. Escapar de Fidel. E pagaram esse desejo compreensível com suas próprias vidas.

Beethoven dedicou a Napoleão, então preso em Alba, sua 3ª Sinfonia – dita “Heroica”. Depois, o corso voltou ao poder e tornou-se um sanguinário. A dedicatória foi riscada. E, em seu lugar, o músico escreveu: Composta para celebrar a memória de um grande homem. Para celebrar um homem que morreu e agora vive só na minha memória. Palavras que bem poderiam ser usadas hoje, trocando só o destinatário.

Qual dos dois Fideis vai sobreviver?, eis a questão. É cedo para saber. Hitler recuperou uma Alemanha despedaçada; mas ficou, apenas, como um assassino frio de judeus. Enquanto Getúlio Vargas, que ascendeu ao poder numa espiral autoritária, permaneceu pelos compromissos com os trabalhadores. E por ser responsável pelas bases econômicas de um Brasil moderno.

Guevara e Fidel foram mitos de várias gerações. Inclusive da minha. Guevara morreu, por balas alheias, levando com ele sonhos juvenis de todos nós. Fidel talvez tenha morrido, em seguida, por suas próprias balas. Agora, cumpre só prantear sua segunda e definitiva morte. Com a sensação de que vai ficando, como disse Beethoven, apenas a memória de um grande homem. Difícil saber para qual lado a história penderá. Um dia, no futuro, se verá. Não hoje. É cedo. No futuro.

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